Chico. A vida e um cigarro

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Era noite clara. No céu a lua brilhava. Lá de cima, de tantos pontos luminosos que eram as estrelas parecia ser possível ver um reflexo da Terra. Luzes das casas. Luzes das fogueiras. Era noite São João. Luzes dos rabos luminosos de vagalumes que brilham. E luz da ponta do cigarro de Chico que brilha na mesma intensidade do vagalume, da fogueira e das luzes das casas.

Chico. Malboro.

Malboro. Chico.

O Malboro se extingue rápido. Queimando tragada por tragada até o filtro.

Já o Chico se extingue lentamente. Vai vivendo a vida, dia após noite. Inverno após outono. Primavera antes de verão. Preguiça se arrastando com a brisa. Essa coisa de trabalhar ele deixa pros homens de verdade. Ele é macho, claro, mas leva a vida tranquila. Não tem nem trabalho, nem mulher que lhe garanta a qualidade certeira do posto de homem que diz assumir. Mas se você perguntar, ele é "homi" sem "tira" nem "pô". Vive da terrinha que herdou do pai. Vivia até ano passado com a mãe. Dividia com ela as tarefas de plantar alface na horta, ordenhar a vaca com nome original de Edcreuza (por inspiração não exatamente positiva de uma tia) e de recolher água da chuva.

Essa coisa de trabalhar pra ganhar a vida nunca pareceu funcionar para Chico. E por isso ele nunca se deu muito ao trabalho de correr atrás e ver se era verdade. Preferiu comprar uma rede com as economias. Colocou ela no meio de duas árvores que só serviam para dar sombra, porque no sol escaldante do deserto brasileiro não davam frutas nem se quisessem. As árvores tinham a personalidade de Chico. Estavam ali. Não morriam, mas também não davam frutos. Existiam pelo simples prazer de torrar no sol do dia e ver as estrelas brilharem de noite.A vida é uma coisa bonita, na opinião de Chico. Ele quase nunca vai até a cidade, mas quando vai pára para ver um monte de coisa. A criançada com energia infita saindo da escola, com os livros na mão, o futuro nos olhos e o amor no coração. Passava também na praça para ver Edmundo, único amigo que fez na vida, trapacear na canastra com os outros aposentados que andavam por ali. Edmundo era um grande homem. Inteligente na mesma medida que o burro é insistente. Sabia de tudo. Um pouco de tudo. De tudo um pouco. Não sabia ler. Isso de ler era mito, para Chico, inclusive. Ô coisa difícil, quem sabia realmente devia estar feito na vida. Mas voltando ao Edmundo era inteligente, mas não por cultivar o hábito da leitura. Era porque era vivido como todo bom velho manso. Viúvo sem neto vivia de contar história e pagar de esperto. Pelo menos isso ele era. Chico no fundo achava que grande parte da cultura toda que Edmundo representava era por causa do rádio dele. Um rádio. Coisa mais linda. Modernidade. Música e gente que fala. Fala e fala. Haja fôlego. Às vezes só de dar bom dia, Chico já sentia a língua seca, mas aqueles homens lá falavam o dia todo, noite e dia, sem cansar. Haja assunto também. Chico não gastava muita saliva falando com toda gente que lhe surgisse na frente. Até porque logo a conversa degringolava e se ficava naquela de:

-É.

-Pois é.

-Que coisa.

-Então tá.

E as duas pessoas, interlocutor e "interlocutado" se iam embora, a passos pequenos, olhando pra trás com desconfiança, sem graça e sem adeus.

Mesmo falando na própria cabeça com os próprios pensamentos, Chico era de poucas palavras. Não era ligeiro, muito menos forte, não queria arranjar briga por discordar de ninguém e mesmo que a voz que lhe falasse na cabeça parecesse não ter corpo, Chico preferia não arriscar e normalmente concordava com ela. Matando todo e qualquer pensamento conflituoso que normalmente leva os homens de sangue quente a dizer: "Mas você não ouse dizer tal barbúrdia nem por cima do meu cadáver, insolente". Nos pensamentos de Chico, o maior absurdo de sua contraparte sem nome era respondido com um grunhido de "Aham..." e assim tudo se ia, lenta e vagarosamente como burra prenha e tartaruga com sede.

Um conto ou doisWhere stories live. Discover now