Olhar Sanguinário

83 1 0
                                    

Segunda-feira à noite. Eu estava sentado no ônibus, voltando da faculdade. A semana estava começando, mas eu já estava exausto. No começo do ano eu não sabia que trabalhar e estudar ao mesmo tempo cansaria tanto. É difícil admitir que você não é de ferro. Mas eu não posso escolher. Eu faço o que tem que ser feito e pronto.

Ventava frio, mas eu abri a janela porque sabia que alguém que estaria em pé me pediria para abrir ou, se fosse mais atirado, colocaria o sovaco na minha cara e abriria ele mesmo. Quando se está em pé no ônibus você tem mais calor e mais direitos. Essa é a lei.

Ventava frio no meu rosto. Levantei o capuz do meu moletom. Não adiantou nada. Meu moletom era a minha segunda pele, ou terceira. No começo do ano, em pleno verão, eu pagava de doido e saia de casa com meu moletom no ombro. Lá no beco, os garotos olhavam estranho. No trabalho, me zoavam. Foda-se. Eu estudei e eles soltaram pipa. Hoje eu estou numa federal. Foda-se. E eu saio de casa com moletom no verão mesmo. Odeio frio. Foda-se.

Na faculdade ligavam o ar-condicionado no 16 para gelar mais rápido. Bando de analfabetos. Eu chegava atrasado na aula por causa do trabalho e a porra do único lugar que sobrava era debaixo do ar. Eu me pergunto como alguém pode gostar de ar-condicionado? Quem inventou essa desgraça?!

Durante toda a história humana, os humanos lutaram contra o frio. Uma das principais funções do fogo foi nos proteger do frio devastador, que levou à morte milhões de nossos antepassados. É inacreditável, um absurdo, um contrassenso que alguém tenha usado de sua capacidade intelectual e criativa para inventar um aparelho que faça uma única pessoa que seja passar frio. Tomar no cu.

Desculpem-me o devaneio e os palavrões do parágrafo acima. Não é esse o objetivo. Os aparelhos começaram a apitar aqui, preciso me acalmar. Retomemos ao ônibus.

A viagem seguia e meu rosto congelava. O ônibus já estava lotado. Lá fora, escuro, semimolhado, os prédios passavam depressa. Dentro do ônibus, a luz forte e branca das lâmpadas preenchiam o ambiente e iluminavam os olhos cansados da pessoas que estavam em pé com os braços estendidos segurando a barra. Todos estavam em outra dimensão, com a visão em outro lugar, com a exceção de um homem, que tinha um olhar concentrado. Perto do seu cotovelo havia uma tatuagem que eu não consegui distinguir o que era. Da distância que eu estava, parecia uma carpa atropelada.

O ônibus parou num ponto de uma faculdade particular. O som do motor, que era quase inaudível e quase confortante, foi invadido por uma confusão de vozes animadas. Muitos jovens no escuro do lado de fora formavam uma fila agitada para entrar no ônibus já lotado. A fila seguia a passos curtos. Do lado de dentro, então, três estudantes pularam roleta. Mão na barra – pé na catraca – salto – estrondo da queda no chão de metal. Todo mundo olhou. Eu olhei para o cobrador. Um homem de 40 anos, forte, já ficando careca. Ele não mudou a expressão indiferente.

O jovens saltadores vinham em direção ao fundo, onde eu estava, esbarrando e empurrando as pessoas, tirando-as do seu estado de letargia. O homem da carpa atropelada mirou seu olhar intimidador para os jovens que se aproximavam.

Não me pergunte como, mas eu sabia que ele estava de peça, e isso significa que ele estava armado. De onde eu vim, a gente sabe. Não se ensina, mas a gente aprende. Assim como um viciado sabe quem tem droga, eu sei quem está de peça. Posso nunca ter me envolvido com o movimento, posso ter passado numa universidade federal, tudo bem, mas algumas coisas a gente aprende por proximidade e não precisa de diploma.

Os jovens estudantes, eles também com a cara fechada e olhos fixos, caminhavam aos trombos para o fundo do ônibus, sem perceber quem estava à sua frente. Foi aí que eu comecei a pensar.

Por que estamos vivos? Milhões de pessoas se perguntaram isso ao longo de toda a história. Talvez essa seja a base de todas as religiões e filosofias já inventadas. Por que estamos vivos? Não tenho capacidade para responder essa questão. Vou deixá-la para os filósofos e espiritualistas.

Olhar SanguinárioWhere stories live. Discover now