A loira se sentou na cama, uniu as mãos em reza e conversou com si mesma e sua fé, em silêncio. Era sobre sua família, o carinho, a esperança e a saudade. Sobre seus sonhos e tudo que havia vivido durante esses anos e como a maturidade havia a ajudado a ser quem é hoje. Era sobre autoaceitação e enfrentar medos. Vitória não fazia ideia de como lidar com os seus sentimentos e o fato de que eles nunca haviam ido embora. Por muito tempo aprisionou o que sentia, e muitas das vezes se viu a mercê de um "e se" que nunca chegava. E se as coisas fossem diferentes? E se eu não tivesse tanto medo? E se ela voltasse?

Ela voltou.

E apesar de todo o temor em seu coração, seguiria com a cabeça erguida e com a sua fé na vida intacta.

Quando abriu a porta para sair do quarto, bateu de frente com um olhar carinhoso e um sorriso de dentes pequenos – Ana a esperava do lado de fora e a cacheada sequer havia percebido.

"Meu 'padim ciço', Ana. Que susto!", riram pela esbarrada repentina, "por que não entrou?"

"Estava esperando você. Você estava no seu momento. Não ia atrapalhar..."

Vitória a encarou por dentre os fios cacheados que estavam a frente dos seus olhos e encontrou conforto e respeito pela sua fé na fala de Ana. Não esboçou muita reação a fala, mas sentia todo o seu corpo aquecer em carinho perante a mulher.

"Cadê Estrela?", indagou, ainda acanhada.

Manejando a cabeça, Ana indicou que a filha estava sentada no sofá, ao lado de Aninha. Ambas seguiram o corredor até a sala em silêncio, ansiosas demais para emitir qualquer som ou palavra. Vitória agachou-se perto da criança, que imediatamente levou seus olhos grandes, redondos, castanhos e caídos – iguais aos da mãe – ao rosto de Vitória, avaliando cada palmo do rosto da loira. "Oi, lindinha", a mulher pronunciou em voz baixa, acariciando a mão de Estrela. Aninha percebeu que o melhor a se fazer era dar privacidade a irmã e a Ana, então calçou seus chinelos e, em tom ameno, avisou a Vitória que iria a casa de uma amiga.

"Como você vieram pra cá?", perguntou.

"Babixa nos trouxe...", respondeu Ana, "posso sentar?"

Vitória a encarou, rindo da formalidade da morena, "claro que pode, Ana. A casa também é sua. Não é como se você nunca tivesse vindo aqui, certo?"

"É verdade."

Enquanto Estrela se mantinha focada em observar atentamente o apartamento de Vitória, as duas adultas travavam uma discussão sobre assuntos banais do decorrer da vida durante o tempo em que perderam contato. Histórias da universidade, de casos que tiveram, do nascimento de Estrela ao diagnóstico do espectro. Escutavam-se atentamente, com vontade de entender cada detalhe das suas histórias, cada detalhe que as fizeram ser mais humanas, mais felizes, mais tristes ao decorrer dos anos.

Após muitas conversas, decidiram por o filme. Estrela, sentada no meio das duas adultas, mantinha seu olhar compenetrado na animação que passava na TV. Tinha sua pequena mão enrolada ao dedo de Vitória que se mantinha imóvel, querendo prolongar a sensação de estar com a pequena. Ana as observava, de canto de olho, se perguntando como Vitória poderia ter uma relação tão bonita com a sua filha em tão pouco tempo. Nesse momento, foi a vez de Ana Clara sentir-se grata pelos rumos que a sua vida estava tomando e pela decisão que havia tido em voltar para sua cidade natal.

"Vi...", Ana começou, inclinando-se para pegar um pouco da pipoca que Vitória havia feito, "cadê tia Isabel?"

Pela primeira vez naquele dia Vitória se viu sem resposta. Fazia algum tempo desde a última vez que havia falado sobre o óbito de sua mãe, mas tempo nenhum a prepararia para falar sobre aquele assunto com Ana. Coçou a cabeça, encarou o chão, olhou para a parede... E nada vinha a sua mente. Não entendia o porquê em ser tão difícil. Sabia que ao contar para a Ana, a reação dela não seria das melhores e os questionamentos viriam à tona. Provavelmente deixaria a morena chateada por nunca ter contado e por ter omitido por tantos anos. Em algum momento Ana descobriria que Vitória pediu um voto de silêncio a sua família e sabia que isso iria a chatear ainda mais. Mas não havia o que fazer. Queria retomar a sua história com Caetano – da forma que fosse – de um jeito limpo e honesto, sem mentiras ou omissões. Por isso, quando sibilou as palavras "ela faleceu", não sabia distinguir a reação de Ana com clareza.

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⏰ Last updated: Apr 11, 2020 ⏰

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