V - Laços de uma vida

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Olhei o horizonte uma última vez, naquela condição de solteira. Mal acordara fui atraída para a varanda como se o mar quisesse conversar comigo. Tinha dormido na casa dos meus pais, no meu quarto, na minha cama... Debrucei-me, então, no parapeito e desfrutei da brisa. Foquei-me no ilhéu, no meu ilhéu...

Nasci na cidade de Ponta Delgada, mas vivi a minha infância em Vila Franca do Campo, com os meus pais e as minhas irmãs. Na juventude, fui estudar para a cidade e ficava durante a semana em casa dos meus tios paternos. Quando finalmente, à sexta-feira, regressava à vila tudo se tornava mais colorido. Os meus pais não eram ricos, mas vivíamos bem. A minha mãe era professora primária, muito dedicada aos seus alunos e à sua casa. O meu pai era bancário, mas, nos tempos livres, dedicava-se às estufas, aos ananases e às bananas. Já vinha de família e eu achava que aquilo era mais terapêutico do que para perpetuar a tradição. As minhas irmãs eram um pouco mais novas do que eu. A Sara tinha dezanove anos, feitos há muito pouco tempo. A Carolina tinha quinze anos e a Juliana, a mais pequenina, tinha dez aninhos. Todas elas eram moreninhas, de cabelos longos, lisos, de um castanho sempre brilhante. Saiam à minha família paterna. Eu era a única parecida com a minha mãe, com cabelo mais claro, levemente ondulado, e olhos verdes.

- Luzia, estás aí? – pergunta a minha irmã pequenina, entrando no meu quarto sem bater.

Vinha perfeitamente penteada, com duas tranças, enleadas numas fitas de cetim, cor malva, a contornar a sua pequena cabecinha. Sorrio para ela, bastante orgulhosa vestindo uma replica do meu vestido de noiva. Ela entraria à minha frente na igreja e, por isso, estava radiante.

-Mana, ainda não te vestiste? – Pergunta-me, estupefacta, e eu só abanei a cabeça...

Como podia dizer à pequena sonhadora que eu estava muito feliz com o meu casamento, mas não completamente feliz?

-Olha, estava à tua espera, mas demoraste tanto! Não queres ajudar-me? – disse-lhe, por fim, para que a conversa não se prolongasse.

Certa de três horas depois, o carro para em frente à igreja empedrada da minha vila do coração. Eu olho para a pequenina que segue ao meu lado, no banco, e ela só se ri. Sei que está nervosa e eu também estou... muito!

- Espera, que eu vou abrir a tua porta! – ordena o meu pai, muito elegante no seu fato preto. Eu estava habituada a vê-lo sempre de fato, mas aquele ficava especialmente bem. Estava muito elegante, para os seus cinquenta e nove anos.

-Mana, olha! – diz a minha pequena apontando para a porta da igreja.

Virei-me e fiquei muito emocionada com tão atimada entrada. De cada um dos lados do portal adornado com uma passadeira branca, estavam as minhas irmãs mais velhas com os seus vestidos malva, lindas, lindas. Seguravam uma grinalda com peónias em vários tons e ramagens de verdura. A ideia sugerida pela Francisca era que a minha pequenina pegasse ao centro do fio e o levasse até ao altar para emoldurar as laterais da minha passagem. As pontas seriam as minhas irmãs que segurariam, logo atrás de mim, e a minha amiga Francisca trataria de ir compondo o véu bordado à mão, tradição da família da minha sogra, que partia do apanhado do meu cabelo por uma extensão de certa de 5 metros. Um exagero suportado.

Quando subi os degraus, de braço dado com o meu pai, nenhum de nós falou, nem as minhas irmãs falaram. Apenas sorrimos com grande cumplicidade e, momentos depois, ao som de You raise me up as portas abriram-se em simetria. A minha visão nublou e não consegui decifrar mais nada. O meu pai guiava-me os passos, descompassados, e o percurso até ao altar que eu tinha feito tantas vezes pareceu-me o mais longo que percorri até hoje. Era uma sensação de câmara lenta de suspense.

Quando, finalmente, ganhei alguma lucidez, vi o Tomé deslumbrante, com um fato cor café com leite. O seu sorriso estendia-se de um lado ao outro da sua pele morena. O seu cabelo castanho estava penteado para o lado, como sempre, mas com um maior cuidado. Fixava os seus olhos enormes em mim. Parecia também ele nervoso, expectante.

Se tinha dúvidas no passo que estávamos a dar, elas desapareceram ali no encontro de olhares. Era o que tínhamos decidido fazer e era o que estávamos dispostos a cumprir.

O meu pai cumprimentou-o, disse-lhe algo em segredo e ele acatou. De seguida, deu-me um grande abraço e seguiu para junto da minha mãe tão bem vestido num fato rosa suave. Então, quando voltei a cabeça, o Tomé beijou a minha testa e posicionámo-nos para a cerimónia. 

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**Se chegaram até aqui, eu já fico super contente! Vamos colocar um gosto?

Dos Açores (Portugal) para o mundo em plena Quarentena!**

Um Olhar Preso no HorizonteWhere stories live. Discover now