Sob as batidas compassadas da porta, batendo como um relógio, e a criatura rangendo a mandíbula quebrada como um Cuco indicando que a hora chegou, a moça perdida tentou ter uma faísca de lucidez para tomar a decisão certa. Estava em uma casa simples, até muito bem organizada, provida de tudo que uma pessoa simples precisa para ser feliz. Exceto pelo monstro sem pele do lado de fora. Enquanto procurava uma saída ou uma arma, se deparou com uma posta logo acima de uma lareira apagada. Aparentava ser um bacamarte velho, porém bem cuidado. "Eu sei usar aquilo! Espera, como eu sei usar aquilo?" 

No instante seguinte, correu para pegar a arma e, enquanto desejava que estivesse carregada, viu que a pólvora e o chumbo estavam sobre uma mesinha, ao lado. Seria necessário carregar. "Se a porta aguentar, eu posso carregar." 

Mas a porta não aguentou. Ao inserir a primeira porção de pólvora, a porta de madeira veio ao chão. A ruiva e a criatura estavam separados apenas por uma bancada, uma mesa e cadeiras, e uma mesinha de centro. Não havia tempo para erros.

Pólvora inserida, pronto. Era necessário socar. Preso ao lado do bacamarte estava o ferro para esta finalidade. Os olhos brancos e mortos da cabeça de urso jantavam a garota à distância. Em seguida, uma quantidade generosa, porém suficiente de chumbo foi colocada no bacamarte. A esta altura, o monstro já atravessava por cima da bancada da cozinha, caindo desajeitadamente sobre a mesa, deixando rastros de sangue por onde se arrastava.

Com o ferro da lateral, acomodou a pólvora e o chumbo no fundo do cano. A criatura já havia derrubado o restante das cadeiras e quebrado a mesa com seu peso.  E a garota, armando a pederneira do bacamarte, o apontou para a cara do monstro. Com as mãos suadas pelo medo, puxou o gatilho sem hesitar. A nuvem densa de chumbo varreu a cabeça mal formada de cima do corpo, criando também um buraco no forro de madeira. Os braços relaxaram e logo os dois metros de corpo esfolado vieram ao chão, formando uma poça com o sangue que saia do lugar que outrora havia uma boca.

"É melhor sair daqui. Ou eu devo esperar alguém chegar? Eu não sei!"  Ao pular por cima do cadáver, viu um cano de espingarda apontar na porta. Segundos depois, um homem gordo e barbado apontou atrás da arma. Os pelos brancos denunciavam a idade. E o cano da espingarda apontado para a garota  demonstrava que o sujeito não estava para brincadeiras. 

-Eu sabia que deveria ter estourado seus miolos quando apareceu aqui! Não vou deixar de fazer isso agora!

-Espere! Eu fui atacada por esse monstro!

-Que monstro?

Só então o velho percebeu a casa parcialmente quebrada, suja de sangue, e o enorme corpo estendido em frente ao cano do bacamarte.

-Essa não, está ficando mais rápido...

-O que está mais rápido? Me diga o que está acontecendo!

O velho abaixou momentaneamente a espingarda, com uma expressão incrédula estampada na face. Logo em seguida, voltou a mirar na ruiva:

-O quê você fez? Por que trouxe esse Trax aqui? Eu vou te queimar junto com ele!

-Eu juro que não fiz nada e nem sei de nada, eu simplesmente acordei naquela cabana ali do fundo sem saber o que está acontecendo!

-Não minta!

-É a verdade!

Após pensar um pouco, o velho disse:

-Tire a roupa.

-Não vou ficar nua...

-Tire a roupa agora e me mostre suas costas! 

Esbravejou, ajeitando a coronha no ombro. A garota rapidamente soltou o bacamarte e levantou o trapo sujo que estava usando, se virando de costas para o sujeito. 

-Você está limpa...

-Eu só quero entender o que está acontecendo!

O velho abaixou a arma e ordenou:

-Não temos tempo, você sabe acender uma fogueira?

-Não sei nem armar uma!

-Não importa, aqui do lado da casa tem um amontoado de palha seca e um monte de lenha. Junte tudo  no círculo de pedras enquanto eu tiro esse Trax daqui.

-Que círculo de pedras? E o que é um Trax? 

-Vá logo!

Desajeitada pelo medo, a ruiva cumpriu a tarefa. O tal círculo de pedras estava logo a frente do combustível. Suspeitando da maneira como uma fogueira deveria ser montada, a garota armou troncos, gravetos e palhas dentro de um círculo. Após deixar tudo pronto, reparou que as rochas pretas estavam marcadas com símbolos rúnicos.

Logo depois, o velho apareceu arrastando o corpo esfolado, enquanto resmungava:

-Droga, esse é muito grande pro círculo!

-Você pode me explicar o que está havendo aqui?

-Pare de gracinhas, pegue uma lamparina!

A garota foi até a porta e esticou o braço para pegar a alça da candeia. Neste momento, percebeu que havia uma correntinha dourada presa em seu pulso. Ao trazer o punho para perto, viu um filete com algo escrito:

-"Kamélia". Será esse o meu nome?

-Ande logo com isso!

O velho voltou esbravejar. A suposta Kamélia retirou a lamparina de seu suporte e correu até o sujeito, que sem titubear pegou-a e bateu na madeira, de modo a espalhar o óleo por toda a palha e gravetos, fazendo com que segundos depois uma chama enorme engolisse o corpo esfolado.

-A cabeça... O que você fez com a cabeça?

-Explodi com o bacamarte.

-Bom, bom... Esse fogo vai resolver nossos problemas, por enquanto.

-Agora pode me dizer o que está acontecendo?

-Você não está brincando mesmo quando diz estar desorientada, não?

-Eu realmente não sei onde estou.

-E ao menos sabe quem você é?

-Não exatamente...

-Vamos entrar... Você pode passar a noite.

O velho seguiu para dentro. A garota, de suposto nome Kamélia, foi atrás. Tirou uns segundos para reparar em si e ver os trapos que tapavam parte do seu corpo, os pés descalços e sujos, respingos de sangue pelos braços e o longo cabelo vermelho que voltou a cair pelo ombro. Ao reparar neste último, se divertiu: "Só faltam meus olhos serem vermelhos também." 

KaméliaWhere stories live. Discover now