Capítulo 1: Itamaraty.

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As vistas cansadas dele, que se debruçara sobre dezenas e dezenas de papeis com grafismos escritos em alemão (língua de proficiência), lentamente se transformava em algo de tupi, algo de guarani, algo de mandarim... caiu com sua cara sobre os papeis. Fecharam-se os olhos, mas os ouvidos – esses pareciam continuar escutando atentamente.

Eram passos, que se aproximavam em ritmos escalonados; vez lento, vez rápido. Até que sucintamente, no que parecia abrir a janela do olhar (mas ainda em suspenso pelo sonho) conseguiu fitar uma figura escura, maquiavélica, mas com um quê de angelical. Suspensa acima do chão e com uma aura de luz amarela que envolvia seu perímetro, parecia querer dizer algo.

Até que uma voz dificultosa, que não se ouvia do que ouvidos ouvem, fez-se ouvir:

"

Audi, audite me.

Qui inde venerunt, "Ego sum".

Nisi sola queat quodcumque nam venire ad me ...

Audi me, audite me ...

"

Sopitou o homem ao despertar. Pegou sua caneta, o verso do papel sobre o vírus e escreveu o latim que ouvira. Há quanto tempo não ouvia. Desde a escola, da amarga escola em que conhecera Julieta. A dos frades, do mosteiro de Santo Antônio Beneditino – "que não era nada com o de Assis, como confundem esses ateus como eu" – frisou.

Correu para fotocopiar o escrito à caneta e logo pendurou no fretboard. Deixou lá, guardou para decifrar no fim de semana. Até porque o seu massivo trabalho de tradutor precisava ser feito. A normalidade chamava João, mais uma vez, e ele precisava atender. Mas no canto do olho, na certeza da dúvida, ele tinha algum medo daquela "visão". Nada que o parasse de seguir pelo seu caminho de rotineiro escrutínio.

Tomou seu banho de algo entre 5 a 7 min. As gotas que caiam sobre sua cabeça, cada qual pesava toneladas. Ele tentava fingir normalidade, mas ora! Nem eu se estivesse lá permaneceria em plena paz e retidão. Ainda teve sanidade de fazer duas torradas e por um copo de suco de laranja. Tomou a chave do carro, desceu à garagem e dirigiu-se a Av. Marechal Floriano (conhecida como rua Larga), lá entre o Morro da Conceição e a Av. Presidente Vargas – centro da ex-capital.

Quantas fossem as arvores que passassem no Aterro do Flamengo. Quantas fossem as buzinadas que recebesse, mal motorista que era, ele não desfitava a mente do episódio que presenciou. O primeiro fato que mais questionou sua mente foi o de ouvir plenamente qualquer coisa que soasse em sua sala; o velho relógio cuco, o ruído da televisão ligada no fundo, até mesmo as notificações do telefone. Absolutamente tudo.

Quando se chegou no seu cubículo, sentou em sua cadeira desconfortável, tomou o seu café fraco – e ele gostava do café mais forte – e mirou a tela de seu computador, o tempo parou. Um silêncio tomou a sua mente, uma angústia apertou seu peito. Era curiosidade, ele nunca tinha sentido isso. Ele não sabia lidar com isso. Suas escolhas eram plenamente rasas, como dantes disse.

Veja por essa perspectiva: uma hora ele esqueceria Julieta, uma hora ele encontraria uma desesperada qualquer para casar, uma hora ele conseguiria uma promoção para diplomata em cargo, uma hora ele compraria uma casa melhor, uma hora ele talvez tivesse filhos, e até talvez tivesse problemas criando-os. Sempre esperando a hora.

Mas o ímpeto que tomou sua mente finalmente fez com que ele tivesse um motivo, um plano: "O que era aquela voz?". Ele correu ao telefone e discou o número. Ele esperou pacientemente na linha até que caísse na caixa postal. Ele sabia que ela tinha um bina, por isso ligou novamente. E dessa vez, ela atendeu:

– Olha aqui! – atendeu irada. Se você acha que eu tenho a obrigação de te atender depois daquele show patético que você deu, você está muito enganado, Senhor João.

– Eu imaginava que essa seria a reação, Dona Julieta, mas você bem sabe da minha alergia a camarão, não podia nem ter me chamado pra comer bobó, é claro que eu ia chamar dellivery!

– Foda-se! Eu tinha preparado com todo carinho pra você e pra Estela. O Carlos estava todo mordido com a minha dedicação e...

– Não é hora Julieta, não agora. Precisamos nos ver. – Interrompeu com a seriedade da sua voz grave.

Ela entendeu. Demorou um tanto a responder, mas entendeu.

– Que horas e aonde?

– Agora, na praça dos velhinhos.

– Agora?! Você sempre marca pra duas ou três...

– Agora. – Certeiro, como João nunca foi.

– Eu tô me arrumando.

Assim que bateu o telefone na base, levantou e só pegou a chave do carro. Mala, até o blazer, tudo largado pela mesa. A foto da avó, o escapulário da mãe – tudo que ele tinha perdido, naquela mesa. Disse que nunca mais voltou lá. Nunca mais olhou praquela foto. Deixou tudo, todos. Despertou pra vida que não viveu, só pra morrer como nunca pensou que morreria.

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⏰ Last updated: Mar 26, 2020 ⏰

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As Crônicas do Fim do Mundo | Volume 1  - O ArquitetoWhere stories live. Discover now