TANTO TEMPO DIRIGINDO SEM NINGUÉM NO RETROVISOR

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Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2018

Sérgio, meu irmão,

Retomo essas nossas conversas empurrado pelo vendaval que sacode o país. Lembro de você dizendo que "não existe nada tão bizarro que não tenha algum precedente no Brasil". Você costumava iniciar ou encerrar com essa frase quando me contava algum dos casos pitorescos que ouvia na redação. Como o da mulher que justificou a gravidez de seis meses para o marido que não via há quase um ano afirmando ter engravidado após assistir um filme pornô com umas amigas. Ou o do pastor evangélico que narrava seus encontros pessoais com Jesus Cristo, finalizando sempre com o mote: "Eu vi Jesus, e ele é baixinho".

Como eu dava risada ao ouvir esses casos! Hoje, no entanto, essa frase sua não me sai da cabeça, sem que eu sinta a menor vontade de sorrir.

Hoje tivemos eleições para presidente do Brasil. E quem quase levou já no primeiro turno, com 46% dos votos válidos, foi o Jair Bolsonaro. Sei que conhece a figura, pois comentou quando ele deu uma entrevista declarando ser a favor da tortura. "E veja você, Sandrinho", você disse naquele seu tom costumeiro, entre a seriedade e a zombaria, "que um sujeito desses chega a deputado no Brasil".

Imagino o que você diria agora, que esse mesmo sujeito está perigando virar Presidente da República. Só de pensar nisso me vem uma secura na boca, uma sensação de irrealidade. A mente simplesmente se recusa a aceitar o que está acontecendo. Acho que muitas pessoas estão sentindo o mesmo hoje, como se estivessem dentro de um sonho do qual não conseguem acordar, e que lentamente vai se transformando em um pesadelo medonho.

Eu mesmo nunca acreditei que Bolsonaro tivesse alguma chance verdadeira. Para mim ele era o maluco da vez, que tem em toda eleição. Tipo o Enéas, ou o Tiririca. Se bem que Tiririca foi eleito hoje para seu terceiro mandato como deputado federal.

Isso me faz sentir também um pouco culpado. Eu deveria ter me interessado mais por política, como você insistia tanto. Mas sempre me senti mais à vontade escrevendo sobre discos, filmes e livros. Apesar de toda a expectativa de que eu fosse seguir os seus passos no jornalismo, nunca escondi minha satisfação ao ser designado para o caderno de cultura. Você sabe muito bem que, em minha opinião, só dois tipos de pessoas se interessam genuinamente pela política. Alguns poucos heróis, como você. E uma multidão de canalhas.

Mas agora não se trata de política. Pode muito bem se tornar uma questão de sobrevivência. O que está acontecendo no Brasil? Gostaria muito de saber a sua opinião.

Um abraço de seu mano,

Sandro

Rio, 13 de outubro de 2018

Sérgio,

Nem eu estou acreditando no quanto a minha vida mudou em apenas uma semana. Será que você ficaria feliz ao ver o seu irmão caçula assim tão engajado em uma campanha política? Quero crer que sim, mas não consigo deixar de ver você com aquele meio sorriso que precedia alguma tirada demolidora, como "até a vitória final ou a primeira pedra no caminho, o que vier antes", ou então "toda causa nobre esconde o desejo de impressionar alguma garota". Especialmente porque, não posso negar, realmente houve uma mulher nessa história: Maria Clara. É minha colega de jornal, que trabalha no caderno de cidades. E antes que você pergunte, não está rolando nada entre nós. Por enquanto.

Não vou falar muito sobre ela, pois sei o quanto você sempre achou ridículas essas "babujices românticas". Basta dizer que a Maria Clara, ao contrário de mim, é muito politizada, sempre às voltas com o que você não hesitaria em chamar de "causas fofinhas": direitos dos animais, preservação da mata atlântica, proibição de agrotóxicos cancerígenos etc.

TANTO TEMPO DIRIGINDO SEM NINGUÉM NO RETROVISOR: Contos da Era BolsonaroDove le storie prendono vita. Scoprilo ora