Dois irmãos contra o mundo

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Naquele momento, a despeito de todas as pessoas que tínhamos conhecido na faculdade e no trabalho, nós dois percebemos que estávamos sozinhos. Não conhecíamos outros dragões ou feiticeiras além dos nossos próprios pais, embora soubéssemos que ainda existiam. Nós sabíamos, inclusive, onde encontrá-los: na agenda da minha mãe, havia um endereço marcado em uma das páginas... Ela nunca explicou exatamente o que era, mas sempre disse que, caso algo de ruim acontecesse, poderíamos buscar por outros como nós naquele lugar.

A princípio, preferimos ignorar aquela alternativa. Talvez fosse pelo receio de abrir mão da nossa vida "normal", ou talvez porque acreditássemos que existia um bom motivo para nossos pais nunca terem nos apresentado àquele mundo antes. Havia tanto que eles ainda não haviam explicado sobre nossos poderes... Mas nós já havíamos perdido demais, e não queríamos deixar para trás o pouco que nos restava.

Como o estágio do meu irmão pagava melhor do que o meu emprego, acabei trancando a faculdade e passei a trabalhar em jornada dupla, para ajudar a bancar os estudos dele. Acordava logo cedo para servir café da manhã na Casa do Pão de Queijo, depois seguia para a loja de produtos esotéricos, ali no mesmo shopping. Ao menos os dois lugares eram próximos, mas a minha jornada de trabalho terminava às dez da noite, me obrigando a encarar um metrô cheio de universitários barulhentos na volta para casa. Eu fingia não me importar, mas sempre me pegava resmungando quando ouvia algum deles se gabando por ter cabulado as aulas daquele dia... Enquanto eu estava ali, me matando para ajudar a pagar a faculdade do meu irmão, eles simplesmente não davam valor à oportunidade que tinham.

Eu sabia, no entanto, que o meu sacrifício não era em vão. Ao contrário daquele bando de irresponsáveis, o meu irmão sempre se empenhara muito nos estudos e no estágio. Ele nunca faltava às aulas, entregava todos os trabalhos em dia e, com toda a paciência, ainda aguentava as provocações de seu chefe (que, certamente, repensaria esse comportamento, se soubesse que o estagiário poderia se transformar em um dragão e destroçá-lo com uma única patada). Meu irmão estava ciente do quanto eu me esforçava por ele e, por isso, retribuía se dedicando ao máximo em tudo que fazia... Talvez até demais.

Naquele dia, eu acabei saindo mais tarde do serviço. O shopping estava cheio por conta da Black Friday, e as lojas tinham ficado abertas até as onze. Como sabia que não teria tempo de preparar a janta, acabei passando pela praça de alimentação e comprei uma caixa de esfihas para levar para casa. O cheiro delas me acompanhou durante todo o trajeto, atiçando o meu estômago faminto e o de todos os que dividiam comigo o vagão lotado do metrô. E, como nosso apartamento não ficava muito longe da estação, elas ainda estavam quentes quando cheguei...

— Trouxe esfihas de novo? — perguntou meu irmão assim que eu entrei, sentindo o cheiro preencher o ambiente.

— As outras lanchonetes já estavam fechando quando eu saí — justifiquei com desânimo, deixando a caixa sobre a mesa, antes de desabar no sofá com um suspiro cansado.

Nosso apartamento não era muito grande. Tínhamos nos mudado para lá depois da morte dos nossos pais, em busca de um aluguel mais barato e um endereço mais próximo do metrô. Não gostava muito daquele lugar... A sala e a cozinha dividiam um mesmo ambiente, o banheiro era minúsculo, e os dois quartos mal tinham espaço para as nossas camas. Por conta da mudança, havíamos despachado boa parte das nossas coisas. Todos os meus brinquedos, minhas revistas, os CDs dos meus pais... E quase tudo que pertencera à nossa família. De nossa antiga vida, restavam apenas alguns livros de feitiçaria e uma caixa com álbuns de fotos, além da velha agenda da nossa mãe — que, resistindo à era dos smartphones, ainda ocupava seu lugar em uma mesinha de canto na sala.

— Quer que eu esquente a comida?

— Não precisa. Só quero comer, tomar um banho e dormir — respondi em meio a um suspiro, enquanto o meu irmão retirava os pratos do armário. — Como foi a aula hoje?

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