o punhal na mão do escravo está pronto para uso.

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A garoa intermitente enlameou todos os caminhos por onde Ezequiel conduz o bando de índios e negros, protegidos pelo lusco-fusco: “bom pro caçador, ruim pra caça” pensa ele, porque sabe.

Nas imediações do acampamento paraguaio, se deparam com uma dupla de sentinelas na tocaia; a escassos passos dos paraguaios e no momento preciso, Ezequiel faz um gesto a um dos seus índios que, já de prontidão, tesa o arco e, sibilando, a flecha atravessa o espaço acertando mira escolhida: a garganta de um dos soldados que tomba com o impacto e a surpresa; seu companheiro observa aparvalhado demorando a entender, o que lhe é fatal: um segundo índio está correndo em sua direção e na mão erguida, um machado em riste desce sobre sua cabeça, abrindo-a até os ombros; o soldado despenca ao lado do moribundo camarada ainda tentando arrancar a flecha que lhe atravessara o pescoço; a mesma machadinha vai em sua ajuda, decepando-o com três golpes; o sangue jorra espesso misturando-se à água do chuvisco que tudo encharcara; a turma de Ezequiel retoma a marcha; correm na escuridão pelos caminhos conhecidos dos indígenas; preferem driblar outras sentinelas; o alvoroço e as luzes dos lampiões indicam estarem bem perto do arraial dos inimigos; cautela e sigilo nos passos que o mato molhado amortece; avançam na calada dirigindo-se à barraca que Ezequiel julga alvo certo: os aposentos do tal Coronel Barrios. A garoa engrossa e vira aguaceiro, as gotas sobre o mato provocam o barulho protetor necessário para chegarem ainda mais perto; as risadas e as cantorias ao longe, indicam que a tropa sente-se segura debaixo dos toldos, excitando a audácia do pequeno grupo de Ezequiel. A luz do lampião projeta na lona as sombras das pessoas no interior da barraca-alvo; uma das figuras o escravo reconhece: é o perfil de sinhá Beatriz. (Conhece-a desde adolescente, quando ela se divertia com os negrotes da senzala, brincando de fugir pelos esconsos da floresta e, quando alcançada, jogar-se ao chão para eles deitarem sobre seu corpo e fazer o que a ela parecia mais lhe agradar: ceder aos desejos que provocava nos molecotes.)

Lembra-se das palavras ditas em jura de resgatar sinhá e devolvê-la à família esperando na Casa Grande. E conhece a expectativa dos companheiros atrás dele que aguardam suas ordens. Ezequiel pouco ouve do palavrório no interior da barraca; o baque da chuvarada no toldo, se antes protegia, agora atrapalha; quase encostando a cara na lona, vai tratando de decifrar o que mal ouve. E antes de compreender, a figura projetada do coronel ergue-se, se desloca e apaga-se, para aparecer em corpo saindo do interior; oscilante; vestido só de calção, abre um guarda chuva e aproxima-se de Ezequiel, preto como as trevas da noite que o encobrem: “bom pro caçador, ruim pra caça”; o punhal vibra na mão do alforriado, pronto para uso; o sujeito se detém perto dele, abre a braguilha e um jorro se confunde com a lama circundante; Ezequiel está a pouca distância do inimigo e seus músculos retesam aprontando o pulo; mas a voz do oficial o empaca: “Amanhã voltamos pra Corumbá e depois te levo pra Assunção, branquinha! – e rindo a boca despregada, tossindo arrotos, acrescentou: – Quem não vai gostar muito vai ser a bruaca de minha mulher se ela descobrir!” Em seguida, fechou a braguilha, o guarda chuva e voltou à tenda, cambaleante, dizendo: “Vamos abrir outra garrafa, minha prenda!” O trovão e a chuvada súbita embaralharam estouro de rolha com risada.
A aproximação de dois soldados que logo se postaram na entrada da tenda fez Ezequiel recuar adentrando no mato.
– Coronel! Estafeta de Corumbá! Sua família chegou de Assunção e querem vê-lo.
– Minha mulher está lá? – gritou a pergunta do interior
– Parece que foi ela quem mandou chamar, coronel!
– Acabou a festa. Que os pariu! Traz o homem aqui, quero saber mais.
– Ele t’aqui, senhor!
– Mande levantar acampamento, tenente. Pretendo almoçar amanhã com minha família em Corumbá.
– Sim, senhor! – o tenente deu meia-volta.
– Espere! Leva esta mulher e junta com as outras. Olho nela. É minha... Depois veremos no que vai dar. Mensageiro, entre aqui e fale mais. – Ambos obedeceram às ordens.
Aos gritos de comando ouvidos pelo acampamento, os soldados iniciam os preparativos da retirada e, na balburdia a seguir, Ezequiel se dá conta que a boa sorte de Beatriz escapou de suas mãos. Por ora.

*Fragmento do romance "Sobre moscas e aranhas de guerra", de Miguel A. Fernandez 

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⏰ Last updated: Nov 25, 2014 ⏰

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Sobre Moscas e Aranhas de guerraWhere stories live. Discover now