II. Artemis é, afinal, deusa parteira

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II.

A noite cantava odes a si mesma além da janela: disso me lembro. Das estrelas, estranhamente brilhantes, e de uma lua tímida, minguante, quase líquida. O mundo se estendia a minha frente na forma de uma longa estrada asfaltada que eu não conhecia, mas ao mesmo tempo, me era mais familiar do que qualquer coisa. Da viagem mesmo, o volante e a marcha e os pedais, não lembro de nada. Não me lembro de meu corpo nem do couro sob as mãos. Não havia corpo para habitar, então, muito menos carro para dirigir.

Flutuei assim, através da terra de Ártemis e Nix, em silêncio. Estava presa em um transe, e não havia pensamento algum que atrevesse correr por minha mente. Apenas dirigi. E quando, depois de horas e horas, cheguei finalmente ao portão que um dia fora verde, estalei para fora de dito transe, e um sentimento terrível se apossou de mim; a minha volta, o mundo era real. Escuro e verde e enorme. Os sons da noite dançavam para dentro do carro através da fresta aberta da janela, quietos, mas tangíveis. O gorgolejar de água em algum lugar e o sussurro que as folhas exprimem ao serem acariciadas pelo vento; a orquestra das cigarras e grilos com a ocasional e agourenta participação de uma coruja; e o som característico do silêncio da noite. Porque a certas horas, o silêncio é também um som — o mais alto e mais quieto dos sons — e tem características próprias. Enquanto eu abria a porta do carro, o silêncio eram um par de olhos inquietantes olhando diretamente para mim, avisando sobre o destino. E eu olhava diretamente para eles, tremendo sob meu chiffon branco, e concordava com a cabeça. É aqui, não é? Consigo sentir o gosto de água no ar.

Tirei meus saltos altos e os deixei no carro. Quando coloquei meus pés para fora, eles encontraram a terra quente e úmida, quase cremosa. O ar partilhava dessas características, permeado pelo perfume da floresta, verde, sensual. Pela primeira vez, sentia que estava na superfície e no lago ao mesmo tempo. O mundo era onírico, mas meus sentidos haviam acordado para ele. Tenho dezessete anos, é o que pensava, e estou de volta à casa de meu pai.

Nasci mais uma vez aquela noite. Ártemis é, afinal, deusa parteira.

O portão tinha uma corrente, mas esta estava largada ao nada, se movendo como um pêndulo, e ele estava aberto. O tilintar do metal contra a madeira antiga tinha um ritmo excêntrico e desconjuntado. Pensei, deixando a música terrível se esgueirar pelos meus ouvidos, que aquele metal não pertencia ali, que correntes e chaves não cabiam naquelas lembranças de rêverie da minha infância. O portão deveria estar ali simplesmente por seu bonito tom de verde — este, já havia se extinguido. 

Passei silenciosamente pelo espaço e comecei a subir a ladeira. A colina tinha uma inclinação suave e aquele pedaço era ladeado por altas e gentis árvores. Elas partilhavam de meus pensamentos sobre o metal. Imaginei que através de minhas pegadas elas me reconheciam, se lembravam que foram minhas babás. A abóboda celeste se estendia destemidamente acima de mim, salpicada por estrelas. Talvez pela presença hipnotizante dessas, assustei-me quando o chalé de minha infância se ergueu a minha frente, no topo da colina. Parei tão repentinamente que deveria ter tropeçado e caído, mas o ar era denso demais para isso, e apenas bamboleei um pouco, os firmes dedos da umidade segurando meus braços.

A casa estava diferente, mas completamente igual também. As mesmas flores nasciam nos parapeitos das janelas, principalmente marias-sem-vergonha. A pintura branca das paredes estava mais desgastada, mas brilhava fluorescente como sempre fez. Uma escada de pedras levava ao pórtico, e a porta da frente estava fechada, mas eu sabia que não estava trancada. Ele a deixava aberta, esperando por mim.
Soltei um teatral suspiro. Além da casa, havia uma horta, e depois dela a colina voltava a descender, só que dessa vez, ainda mais brandamente, e haviam esparsas árvores decorando o caminho. Sei que além da minha visão, elas se multiplicavam novamente para formar o bosque. Ali, em frente ao chalé de minha infância, tinha uma simples escolha para fazer. Eu sabia que papai dormia lá dentro. E sabia que para além da casa, estava o campo de margaridas à beira do penhasco. Já não havia mais hipnose borrando minhas capacidades. O mundo era perfeitamente tangível a minha volta, e, assim, voltei meus pés para minha casa e subi as escadas. A porta, por sua vez, estava lustrosa e impecável; e a alguns centímetros da ponta de meus dedos. Eles pairaram ali por curtos momentos e então, retornaram ao lado de meu quadril. Dei um passo para trás, e comecei a contornar a casa, a madeira áspera da varanda contra a sola nua dos meus pés.

A janela do quarto dele era a mais florida de todas. Violetas e margaridas e diferentes tipos de gipsofilas, cercando um único lírio branco. Eram as flores preferidas dele, os lírios, e minhas também. Lembro-me de dias na margem de um rio lamacento, copos-de-leite crescendo alabastrinos como anjos caídos em meio ao mato selvagem, nossas calças dobradas acima dos tornozelos, o verão eterno e preguiçoso. A divertida ameaça de cobras escondidas, chapéus de abas largas, mãos dadas enquanto vagávamos rio acima. Lírios são as flores da pureza. A absoluta limpidez daqueles dias belos e inúteis, das flores de pétalas gordas que enchiam meu coração com uma ternura incondicional e áurea.

A janela estava aberta, e o quarto, escuro, mas eu conseguia vê-lo perfeitamente. Estava muito mais calvo do que antes, mas de resto, não mudara tanto. Ele mesmo, era um lírio, brilhando sob o prateado lunar que escorria da janela e da claraboia. Um calor leitoso emanava da visão, seu peito largo subindo e descendo sob lençóis brancos, a rugas suavizadas pela calma do sono e aquele maxilar suave e boca de lábios finos, que diziam serem espelhados em mim. O olhei por minutos incontáveis. Finalmente, assenti e, não sem antes sussurrar algumas palavras gentis às flores, comecei a andar na direção das margaridas, lírios as minhas costas.

Uma Margarida Colhida Do Fundo De Um LagoWhere stories live. Discover now