Sonho e chuva

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O céu, pelo que dá pra ver através da janela, está carregado de nuvens escuras. Nem mesmo com a chuva intermitente o calor dá uma trégua. Relâmpagos pipocam no horizonte, tão longe que não é possível ouvir os trovões que os sucedem. Estou sentado no sofá da sala de casa lendo Deuses Americanos de Neil Gailman na tradução para o português. Ler uma história traduzida é mais fácil do que forçar a mente a decifrar uma língua que aprendemos como uma matéria de escola, mas é como aquele jogo infantil de telefone sem fio. Interpretamos a interpretação do tradutor. Perdem-se algumas piadas e sacadas linguísticas entre outras coisas que deixamos passar batido.

Minha cabeça começa a pender de sono. Meu quarto está a apenas alguns passos, se dormir no sofá sei que no outro dia acordarei com minha cervical reclamando por ter de repousar torta. Porém está cedo para dormir. Só quero fechar os olhos por cinco minutos e depois voltar à leitura das desventuras de Shadow Moon e Odin numa América distópica e obesa. 

Em volta há um grande salão comprido que mais parece um pátio ou um corredor mais largo do que o usual. Uma festa está acontecendo. Os convidados tem as faces borradas e conversam em pequenos grupos de três ou quatro pessoas. Não ouço o que dizem. Estou sentado em um sofá creme que estranhamente fica de frente para a parede do salão. Uma jovem mulher morena de cabelos lisos e compridos aparece andando perto de mim. Me levanto e começo a puxar assunto. Não é possível entender o que digo e nem o que ela responde. Como em uma cena de filme, há um corte e então estamos deitados no sofá. As roupas dela desaparecem num passe de mágica. Ela encosta as costas nuas no meu peito e, com a mão esquerda, acaricio seus seios enquanto a direita alisa uma das pernas.

— Não, no salão não. Tem muita gente... Me siga, conheço um lugar mais reservado.

Em outro corte de cena me vejo seguindo-a (ela de alguma maneira está vestida de novo) até um outro corredor, mas meus passos nunca são ágeis o suficiente para alcança-la. O número de convidados sem face começa a aumentar até se tornar uma multidão de estranhos. A mulher fica cada vez mais distante até eu perde-la de vista. Ato contínuo estou na parte externa do salão onde acontece a festa. Entre uma piscina e uma pista de skate. Alguns garotos fazem manobras impossíveis no half pipe segundo as leis da física do mundo real. Uma menina aparentando uns doze anos de idade, sai da pista e anda em minha direção com seu skate debaixo do braço. Apenas observo. Ela para na minha frente e diz.

— É melhor você acordar. Já é dia e você passou a noite no sofá.

Acordo com o livro sob a cabeça como se fosse um travesseiro. A pernas encolhidas para caberem no sofá da sala. Me levanto e vou ao banheiro mijar passando a mão na parte de trás do pescoço onde um torcicolo me atormenta. São seis da manhã, já parou de chover e faz ainda mais calor. Na frente do espelho, após urinar, lavo as mãos, o rosto e me barbeio pensando na morena que fugiu de mim no sonho. Tenho a impressão que já a vi em algum lugar. Pode ser tanto uma conhecida quanto uma celebridade que vende creme dental em comerciais de televisão. Vou até a cozinha, preparo café enquanto esquento dois pães amanhecidos na chapa.

Termino o desjejum e vou à varanda de concreto fumar um cigarro e observar o parco movimento da rua do bairro cuja a população só faz envelhecer. Aguardo um caminhão fretado que vem buscar alguns móveis que deixaram na garagem da casa que hoje serve de depósito. O cigarro irrita minha garganta e deixa minha língua com gosto de cinzas.

Durante o tempo que o caminhão não vem, preencho as horas colocando algumas roupas para lavar na máquina e pensando em o que fazer de almoço. Há arroz pronto na geladeira e feijão no congelador. Provavelmente fritarei um pedaço de calabresa e farei uma salada de tomates para acompanhar. O caminhão chega no meio da manhã. Dois homens, que pela aparência e o sotaque parecem vindos do Nordeste, carregam o baú com móveis e eletrodomésticos enquanto aponto o que pode ser levado e o que deve permanecer onde está. 

Quarenta minutos depois o caminhão parte com sua carga rumo à algum conjunto de condomínios na região leste da cidade. Meu gato, que até então estava em algum telhado vizinho infernizando a vida dos cães presos nos quintais, dá dois saltos e entra na cozinha procurando sua vasilha de ração que está vazia. Dou-lhe de comer antes que o bichano defeque no chão. Ele costuma fazer isso como forma de protesto quando deixo de dar atenção à ele.

Após o almoço, volto à leitura do romance imaginando se a tal morena aparecerá em meu próximo sonho. Não consigo prestar atenção no enredo, a história já é conhecida por mim. Fecho o livro marcando a página 314 com um pedaço de papel sulfite e saio à rua em busca de inspiração.

Caminho em direção à avenida central observando os pássaros urbanos. Pombos, pardais, sabiás, beija-flores e algumas araras que voam em duplas fazendo estardalhaço. Sou interrompido por uma senhora negra com um lenço sobre a cabeça. Aparenta alguma idade entre setenta e cem anos.

— Menino, me empresta o fogo.

Não sei como ela sabe que eu carrego um isqueiro. Saco-o do bolso e estendo em sua direção. Rápida como um raio ela acende seu cigarro sugando a fumaça num gesto que a faz parecer ainda mais velha. Me devolve e diz.

— Cuidado com o que deseja nos sonhos. Às vezes você pode conseguir.

Não respondo e continuo a caminhar até o centro da cidade. A cabeça dando voltas tentando achar alguma coerência entre pequenos fatos isolados do cotidiano e do mundo onírico. Ouço um trovão e, cinco minutos depois, começa a chover torrencialmente. Faço um giro de cento e oitenta graus e volto correndo para casa. Chego molhado até o tutano dos ossos.  

Após um banho quente e roupas secas, assisto ao jornal vespertino que noticia a morte de um motociclista em uma violenta colisão com um caminhão durante a chuva da tarde. A bela repórter morena que narra a tragédia me é estranhamente familiar. 




Sonho e chuvaWhere stories live. Discover now