PRELÚDIO

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Matar é simples, fácil. Viver é difícil. Extraí a frase de um filme. Algo assim.

Depois que tia Isabel morreu, Pablo me largou e o gato amarelo sumiu, terminei abandonada em Madri. Esgotados luto, argumentações e buscas, refleti sobre possíveis escolhas para uma artista plástica solteira, quase 30, sem família ou emprego fixo, do outro lado do oceano.

Vim para a Espanha como virão tantos viajantes perdidos de rumo.

Minha irmã se jogou da varanda, às 23h35, no domingo, enquanto eu secava o cabelo e meus pais viajavam. Ouvi a campainha e batidas ferozes na porta. Aloísio, porteiro da noite, pálido e gago, tentou falar que Maria desabara sobre o deck da piscina. Demorei a compreender. Voei onze andares escada abaixo. Não quis aguardar o elevador. Atravessei pátio interno, quadras, jardins e corri para o parque aquático, descalça, rumo à barreira de vizinhos com trajes de dormir.

Estaquei, eles se afastaram, e eu vi a boneca desengonçada, posição impossível, cabeça de lado, sangue se alastrando. Parte dos cabelos flutuava na água. O resto foi condensado em uma confusão de imagens que terminou na capela do cemitério. Não acompanhei o funeral. Passei meses no quarto, chapada, onde meu pai surgia, a intervalos, carregando comprimidos e água.

Maristela, minha mãe por afinidade, porque a biológica sucumbiu no parto, fumava e se entupia de vinho no sofá da sala. Bateu o carro, arrebentou o crânio. Meu pai aguentou firme. Até enfartar. Em dois anos, todos foram embora. Por que Maria se suicidou? Descobri ao recuperar lembranças apagadas. Se eu ficasse presa a essa pergunta, porém, teria feito companhia aos mortos ou aos loucos.

Então, Isabel me convidou para morar com ela. Passei a tomar mais vodca e ansiolíticos do que deveria. Cheguei embriagada muitas noites. Quando ficava com Pablo, fazia sexo louco e selvagem ou bebia e vomitava no tapete.

Perceber que eu retornara à solidão absoluta me encheu de pavor. Não digo que não contemplasse a sacada com cobiça, mas o apartamento ficava no primeiro andar. Herdei o imóvel e vários investimentos da tia.

Eu possuía também a herança de meus avós maternos e o patrimônio da família. Salvo pela vodca, gastava bem pouco. Havia bastante dinheiro.

Decorridas semanas de rotina espanta-depressão ─ acordar, tomar café expresso, andar no Parque do Retiro, comer sanduíches, comprar garrafas de vodca, assistir a filmes antigos e documentários filosóficos ─, resolvi: meu futuro estava na filosofia. Li Platão, Sócrates e Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Hume, Kant, Nietzsche, Sartre e Marx (nunca achei que fosse filósofo). Continuei na merda, contudo era capaz de identificar todas as merdas da minha vida segundo cada um deles.

Recorri à terapia de novo. Doutora Carmen Aguirre seguia Freud ou Jung ou sei lá. Meu espanhol era deficiente. Renasci. Esse é o mistério da psicanálise. Não importa o que você diz ao terapeuta. A cabeça é remendada e observamos a própria história impregnados da complacência de um sábio. Enterrei dor, raiva, medo. Assunto encerrado.

Adquiri telas, blocos de papel, aquarelas e pincéis. Voltei a pintar. E a rascunhar croquis para uma escultura que vinha me assombrando há tempos. Fiquei tão obsessiva que nem lembrava mais de comer. Perdi oito quilos e sofria enjoos constantes. Despenquei embaixo do toldo da Chocolatería Puerta del Sol. Acordei no hospital, cercada de aparelhos, soro e uniformes verdes. Recebi alta sob advertências, prescrição de medicamentos e instruções nutricionais, pois eu chegara desnutrida e desidratada.

Retomei os croquis. Quando exausta, comia qualquer coisa e pintava paisagens imaginárias. Por fim, aluguei horário num estúdio, compartilhado com desconhecidos que não me esforcei em conhecer, e consegui recomendação de fundição respeitável. Após desentendimentos, descarte de peças defeituosas e quase homicídio do idiota da fundição, alcancei o resultado pretendido.

Aceitei convite do pessoal do estúdio para a exposição coletiva do ateliê, que ocorreria no Bairro Salamanca.

Na véspera, no Parque do Retiro, encontrei Maria. Vestia a roupa usada no suicídio. Aproximou-se. Sussurrou: "Alice."

Memórias jorraram. Borrões ainda. Fantasmas.

Durante a exposição, ingeri espumante em excesso, ri demais e circulei pelo lugar como autômatos ou desencarnados devem fazer, sem notar ou sentir nada.

A máscara de bronze capturou meu olhar, imensa, assustadora naquela perfeição inerte. Um pequeno grupo estacionara diante dela, trocando impressões, comentando. Rosto feminino inclinado de lado, fisionomia contorcida, cabelo oculto atrás do pescoço, órbitas vazadas, boca entreaberta. O impacto do choque me despertou do transe. Eu esculpira a máscara mortuária de Maria.

E os fantasmas escaparam do limbo.

A festa.

Maria desapareceu. Alto Leblon, casa enorme, gente alcoolizada dançando, falando alto. Empurrei os convidados para abrir caminho, atenta, apreensiva. Subi ao terraço. De cima, eu poderia localizá-la: Maria se destacava, era linda. Ouvi choro e gemidos vindos do anexo.

Tirei os sapatos e fui para lá, orientando-me pelos sons. Saíam do fundo, do banheiro, abafados pelo ruído exterior. Puxei a porta. Alguns centímetros. Suficientes para distinguir minha irmã sendo atacada brutalmente. O relógio parou. Permaneci ali, suspensa. Avistei Maristela sentada na bancada, copo de uísque na mão, cigarro na outra. Escutei o diálogo:

"Isso quita nossa dívida?", ela questionou o homem ligeiramente grisalho. Reconheci o sócio de meu pai, proprietário da casa.

"Longe disso, mas vou perdoar, a menina é gostosa", ele respondeu, gargalhando. Voz rouca, fria. Acento espanhol pronunciado.

Gotas de suor gélido escorriam por minha espinha. Temi que o pulsar frenético nas têmporas me denunciasse.

A sessão de tortura durou uma eternidade. Cinco sujeitos se revezavam sobre Maria, que gritava como animal acuado, imobilizada de bruços no solo fedendo a urina, pinho e sangue. O vestido de lantejoulas fora erguido acima dos seios nus, a calcinha de renda, reduzida a trapos no canto. Ela silenciou ao me ver. O brilho das íris esmeralda se extinguiu.

Fugi.

Observei minha irmã morrer lentamente. Maria cortou os pulsos. Cortava-se com gilete, vidro, facas, nunca desistia. Não podiam tocá-la na UTI. Eu não contei a ninguém.

Voz familiar à direita. Viro-me. Reconheço o homem alto e atlético, cabelos negros pontilhados de fios brancos. Atraente, sedutor. Cumprimenta-me. Menciona qualquer coisa sobre capturar o instante da morte. O relógio recomeça a funcionar. Sorrio.

Quebro a taça de cristal na parede, segurando a haste pontiaguda e afiada. Tudo acontece rápido. Segundos? A máscara da morte jaz no solo, ofega, é dominada por espasmos; mãos ensanguentadas lutam para arrancar o objeto do pescoço. Espero.

A galeria continua apinhada. Estamos nos fundos. O ponto é isolado, desprovido de câmeras, intrusos ou testemunhas. Eu calçara luvas compridas, negras. Nenhuma digital ou epiteliais.

Minutos, meia hora, duas?

Aliso o vestido na frente do espelho. Meus olhos têm a cor das folhagens na tormenta. Os de Maria nasceram plácidos. Única diferença entre nós.

Deixo o local despercebida. Adentro a madrugada de Madri. Serena, passos confiantes.

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⏰ Last updated: Feb 14, 2021 ⏰

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