Capítulo 1

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A vida é estranha: quando pensamos que vamos nos dar bem e que teremos momentos de paz é aí que vem algo e nos chuta os dentes com força.

Não, a vida não é estranha. Ela é irônica.

Era aniversário de um ano de meu divórcio. Um ano que eu tinha entregado a minha esposa metade de meus bens. Tinha ficado apenas coma casa que herdei de meus pais. Ela era pequena, em um bairro de periferia. Tinha um quintal grande, onde meus pais plantavam flores. Plantavam no passado. Eu era o único morador de lá. Limitava-me a apenas jogar água nas flores quando não chovia.

Mas eu estava feliz. Pela primeira vez em muito tempo, eu desfrutava da paz de minha própria companhia. Sem muito dinheiro, sem bens, com um emprego onde eu era mais escravo do que qualquer outra coisa. Mas com um sorriso no rosto, pois quando chegava em casa podia me dedicar a leitura de mangás, ver animes e ler algo que não me lembrasse "dinheiro, reclamações ou advogados". Eu devia ser um dos poucos açougueiros da cidade e um dos poucos habitantes de meu bairro a entender fluentemente a língua japonesa. Era meu único legado, a única coisa pela qual eu seria lembrado pelos outros otakus que conhecia, uma porção de pessoas na casa dos quarenta que ainda tem os mesmos gostos de entretenimento que tinham em sua adolescência nos anos 90. Ficava cortando carne morta o dia inteiro, mas a noite, ah! Eu me transportava para mundos fantásticos sem a necessidade de traduções mal feitas ou legendas.

Então, bem...lembra do chute nos dentes?

Uma noite, o calor estava insuportável. Demorei em dormir e, como resultado, acordei mais tarde do que o comum no dia seguinte. Tinha que ir para o açougue correndo mas, ao fechar a porta de casa, pensei nas flores de meus pais. Com exceção da casa, aquelas flores era o único legado existente deles. Com peso na consciência, acabei indo pegar o regador para jogar um pouco de água nelas. Era oito da manhã, e o Sol parecia tão quente quanto o doa meio dia.

No que me aproximei do jardim, o girassol "me olhava" de frente. Cheguei a pensar: "essas coisas não ficam voltadas para a luz?".

E então o jardim não estava mais lá.

Havia flores a minha frente, mas bem poucas. Eu me sentia desnorteado, sem saber o que havia acontecido. Olhei para trás, para frente, e para cima. O Sol estava no meio do céu. Meio dia? Calor insuportável que esquentava o piso rústico sob meus pés. Mesmo piso do quintal de casa, bom pelo menos o pedaço em que pisava um pedaço pequeno. Logo depois dele muitas placas de mármore, ou granito ou sei lá o que. Muitas, divididas por um pequeno corredor de grama e separadas entre si por um intervalo de mais ou menos uns 2 metros. Eram lápides e aquilo era um cemitério.

Virei-me, e caí no chão de joelhos. Estava tendo um ataque de ansiedade. Me lembrei do me minha psiquiatra me disse: " quanto tiver um ataque desses, tente se prender no que existe, no que é real. Respire, prestando atenção na respiração. Use seu tato, seu olfato. Não ligue para o que não existe. Se concentre no que existe". Fiz exatamente isso. Fechei os olhos. Quando os abri, o cemitério continuava lá. Mas consegui evitar sair correndo e berrando.

Comecei a pensar no que podia estar acontecendo. Seria minha imaginação ou eu poderia ter morrido? Aquilo seria uma espécie de pós vida? Meu coração ainda batia e o regador, que segurava fortemente em minhas mãos, continha a mesma água fresca de antes.

O lugar não era muito grande, e era circundado por um muro. A única entrada ou saída era um portão de metal, com alguma coisa escrita. De onde eu vi, estava ao contrário, mas dava pra ler algo como "repouso dos que se sacrificaram". Estranho. Nunca ouvi falar de um cemitério chamado assim. Pode ser apenas uma frase de efeito, do tipo "nos que aqui estamos por vós esperamos". Muitos cemitérios em nossa cidade, os mais antigos, tinham apelidos que não condiziam com o nome real do lugar.

Decidi andar até o portão. Chegando lá, vi que estava trancado com alguém tipo de fechadura eletrônica. Estranha mistura de novo e antigo. Tão esquisita quanto à avenida a minha frente: sem nenhum carro, nova, parecia ter sido feita ontem. Vi uma placa: Estrada Velha das Almas. O mesmo nome da avenida que cruzava com a minha rua. Foi quando vi que alguns poucos prédios do outro lado da avenida era exatamente os mesmos da minha avenida, apenas com cores diferentes em alguns casos!

Senti novamente a ansiedade chegando e resolvi me sentar, olhando para aquela enorme via deserta. Não passava ninguém pela calçada. Do outro lado um muro, separando os prédios da rua. Mas ninguém passava. Não havia lojas, bancas de jornal, policiais, nada.

O que poderia ter acontecido? Nos animes, coisas estranhas são comuns. Mas isso... Viagem no tempo? Realidade paralela? Ou eu enlouqueci e na verdade, em vez de estar em um cemitério, estou alucinando?

Joguei um pouco da água do regador em minha cabeça. Já na estava tão fria, mas me parecia bem real. Mas quantos sonhos não são reais até o momento de despertarmos?

Olhei para o local onde as lapides estavam. Pareciam poucas, talvez menos de quarenta no total. Tinha duas estátuas no final da sequencia dos túmulos. Dava para notar que eram figuras humanas, um homem e uma mulher, em pé, olhando de frente um para o outro e ficando de lado para as lápides. Seria uma homenagem a alguém ou um casal estaria enterrado lá? E como aquelas estátuas não me chamaram a atenção antes?

Decidi que , enquanto aquele portão não abria ou eu não acordava na minha cama , o melhor seria ir lá ver alguma pista de onde eu estava.

O Sol continuava opressor. Cada vez pior. Joguei mais um pouco de água em minha nuca.

Os nomes nas lapides não me chamavam a atenção. As datas das mortes sim: a maior parte variava entre 2024 e 2042. Decididamente a hipótese de viagem no tempo ganhava força, mas ainda estava atrás do surto alucinatório.

Ao chegar às estátuas senti como se alguém estivesse sapateando sobre meu túmulo. A estátua do homem tinha algo de familiar.... Mas difícil discernir. Cara cabeludo, estilo roqueiro. E com barba. Olhava para a mulher com alegria em sua expressão. Já a mulher era jovem, cabelo curto e com um olhar de tristeza. Vi sua data de nascimento: 13 de janeiro de 2021. Seu nome era Tereza dos Campos. O mesmo sobrenome que o meu. Sua data de morte era 28 de novembro de 2042. Uma distancia de uns 6 metros separava uma estátua da outra. Uma frase: deixou de viver para que todos vivessem. Fui ate a do homem. E logo vi que, de fato, estava certo em minhas sensações.

Eu estava pisando em meu próprio túmulo.

Comecei a ficar zonzo. Vi a data de morte: 28 de novembro de 2042. Daqui a 22 anos. O nome que estava na lapide era o meu: Felipe de Campos. Vi que tinha algo mais escrito, mas não deu tempo. Tudo girava, meu coração disparou. Caí no chão tremendo e comecei a gritar, como se nunca mais fosse parar.

E então tudo se apagou.

Um cemitério em meu jardimDär berättelser lever. Upptäck nu