VI - A cena do crime

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— Certamente. Posso investigar esta questão das pegadas mais tarde — disse Poirot, animado.

Em vez de seguir pela alameda até o portão, monsieur Bex tomou um atalho com curvas em ângulo reto, que formava um ligeiro aclive a partir da face direita da mansão. O caminho era todo cercado por arbustos dos dois lados. Mais adiante, para cima, surgiu subitamente uma clareira de onde se podia avistar o mar. Havia um banco nesse local e, logo adiante, um velho galpão. Alguns passos mais à frente, uma linha bem definida de arbustos baixos marcava os limites da propriedade. Monsieur Bex forçou a passagem por entre esses arbustos e então chegamos a um descampado cheio de altos e baixos. Olhei em redor e fiquei intrigado com o que vi.

— Ora, mas isto é um campo de golfe — exclamei.

Bex confirmou.

— Ainda não está pronto — explicou. — Esperam inaugurá-lo daqui a um mês, mais ou menos. Foram os trabalhadores que encontraram o corpo na manhã de hoje.

Olhei em redor. Quase engasguei com o que vi um pouco à esquerda: uma cova longa e estreita e, de bruços, o corpo de um homem! Meu coração disparou por alguns instantes, quando senti a possibilidade de um segundo crime ter acontecido. Mas o comissário dissipou minha ilusão dando um passo adiante e dizendo, aborrecido:

— Onde estão meus homens, afinal? Dei-lhes ordens estritas para não permitirem a aproximação de ninguém sem credenciais!

O homem no chão virou a cabeça por sobre o ombro.

— Mas eu tenho credenciais! — observou, erguendo-se lentamente.

— Meu caro monsieur Giraud — exclamou o comissário. — Não fazia ideia de que já estava aqui. O delegado está impaciente à sua espera.

Enquanto falavam, observei o recém-chegado com a máxima curiosidade. O famoso detetive da Paris Sûreté me era familiar pelo nome e eu estava extremamente interessado em conhecê-lo pessoalmente. Era muito alto, tinha cerca de trinta anos de idade, cabelos e bigodes ruivos e ostentava um porte militar. Notava-se um traço de arrogância em seus modos, o que me indicava que ele sustentava certo orgulho de sua própria importância. Bex nos apresentou, apontando Poirot como um colega. Um traço de interesse se fez notar nos olhos do detetive.

— Conheço-o de nome, monsieur Poirot — revelou. — Causou muita impressão nos velhos tempos, não é mesmo? Porém hoje os métodos são muito diferentes.

— Os crimes, no entanto, permanecem os mesmos — observou Poirot, gentilmente.

Percebi, imediatamente, que Giraud estava preparado para ser hostil. Estava ressentido por ter outro grande detetive associado a ele. Senti que, caso descobrisse alguma pista importante, faria de tudo para não apresentá-la a Poirot.

— O delegado... — Bex voltou a falar.

Porém Giraud o interrompeu rudemente.

— Que se dane o delegado! A luz é o que importa agora, pois irá desaparecer daqui a meia hora ou pouco mais. Já sei tudo sobre o crime e as pessoas da casa poderão ser muito úteis amanhã. Porque, se quisermos encontrar alguma pista dos assassinos, este é o local para procurarmos. São seus homens que andaram pisoteando por toda parte? Pensei que já estivessem mais bem treinados nos dias atuais!

— Certamente estão, sim. As pegadas das quais o senhor se queixa foram feitas pelos trabalhadores que encontraram o corpo.

O outro grunhiu, insatisfeito.

— Bem posso ver as marcas deixadas pelos três desde a cerca viva. Mas foram astutos. É possível reconhecer as pegadas centrais como as de monsieur Renauld, mas as que estão dos dois lados foram cuidadosamente apagadas. Não que houvesse muito a se ver neste solo endurecido, mas eles não quiseram correr riscos.

— Sinais exteriores — falou Poirot. — Eis o que o senhor está procurando, não é?

O outro detetive o encarou.

— É claro.

Poirot sorriu muito discretamente. Fez que ia dizer alguma coisa, mas se conteve. Curvou-se diante de uma pá jogada no chão.

— Não há dúvida de que eles abriram a cova com isso — sentenciou Giraud. — Mas o senhor não vai conseguir nada com isso. A pá pertencia a Renauld e foi manuseada por um homem calçando luvas. Aqui estão elas. — E apontou com o pé o local onde um par de luvas sujo de terra se encontrava. — As luvas também pertencem a Renauld ou, tanto melhor, a seu jardineiro. Posso lhes garantir que os homens envolvidos nisso não estavam dispostos a correr risco nenhum. O homem foi morto com seu próprio punhal e teria sido enterrado com sua própria pá. Os caras não queriam deixar pista de nada! Contudo, vou pegá-los. Sempre sobra alguma coisa! E estou determinado a encontrá-la.

Poirot estava aparentemente interessado em outra coisa, porém. Um pedacinho de cano de chumbo, curto e descorado, encontrava-se caído ao lado da pá. Ele tocou o objeto com delicadeza.

— Será que isto aqui também pertencia ao homem assassinado? — perguntou, e eu tive a sensação de ter detectado em sua voz um sabor sutil de ironia.

Giraud deu de ombros indicando que não sabia nem se importava com aquilo.

— Deve estar caído aí há semanas. De qualquer modo, não me interessa.

— Eu, ao contrário, achei muito interessante — afirmou Poirot, todo meigo.

Acredito que ele estava meramente empenhado em aborrecer o detetive parisiense e, se eu estava certo, Poirot logrou êxito. O outro se virou bruscamente, deixando claro que não tinha tempo a perder, e retomou suas buscas no solo.

Enquanto isso, Poirot, comportando-se como se tivesse tido uma ideia fabulosa, atravessou energicamente os arbustos e tentou abrir a porta do velho galpão.

— Está trancado — informou Giraud, olhando por cima do ombro. — Não passa de um lugar onde o jardineiro guarda sua tralha. A pá não saiu daí, mas de um pequeno abrigo de ferramentas próximo à mansão.

— Maravilhoso — murmurou monsieur Bex para mim, completamente extasiado. — Não faz mais de meia hora que está aqui e já sabe de tudo! Que homem incrível! Não há dúvidas de que Giraud é o maior detetive vivo da atualidade.

Embora o detetive me despertasse total repugnância, eu estava secretamente bem impressionado. O homem parecia irradiar eficiência. Fui obrigado a admitir que, até ali, Poirot ainda não tinha mostrado grande distinção, o que de algum modo me deixava envergonhado. Ele parecia dar importância a todo tipo de coisas fúteis e até pueris que nada tinham a ver com o caso. Naquele momento, como se confirmasse o que sentia, fez a seguinte pergunta:

— Monsieur Bex, por favor, explique-me o significado desta linha branca desbotada passando em torno da cova. É trabalho da polícia?

— Não, monsieur Poirot, é uma marca do campo de golfe! Mostra que neste lugar deveria haver uma banca de areia, ou bunker, como dizem no jogo.

— Um bunker? — Poirot voltou-se para mim. — É aquele buraco de areia irregular cheio de areia com um pequeno barranco ao lado? É isso?

Confirmei.

— É verdade então que monsieur Renauld jogava golfe?

— Sim, era um exímio jogador. Foi graças a ele e às contribuições que vinha angariando que a construção do campo estava indo adiante. Inclusive, ele estava envolvido no projeto do traçado do campo.

Poirot refletiu profundamente e, então, observou:

— Não escolheram bem este campo como local para enterrar o corpo. Quando os trabalhadores começassem a escavar, o cadáver logo seria descoberto.

— Exatamente — gritou Giraud, triunfante. — O que prova que eles não conheciam bem este lugar. É uma excelente prova circunstancial.

— É — disse Poirot, hesitante. — Ninguém que conhecesse este lugar como um campo de golfe enterraria aqui um cadáver. A não ser que se quisesse que o corpo fosse descoberto. O que é, evidentemente, um absurdo, não é?

Giraud nem se deu ao trabalho de responder.

— É — continuou Poirot, num tom de voz que demonstrava insatisfação —, é isso... sem dúvida... um absurdo!


O assassinato no campo de golfe (1923)Where stories live. Discover now