I - Uma companheira de viagem

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Sacudiu violentamente a cabeça.

— Como você fica quando está com raiva? — perguntei num sorriso.

— Viro o capeta em pessoa! Não ligo para o que digo nem para o que faço! Uma vez quase dei fim num atrevido. É, é isso mesmo. Ele fez por merecer.

— Se é assim — implorei —, não fique com raiva de mim.

— Não vou ficar. Gosto de você. Desde o primeiro momento. Mas você fez uma cara de desaprovação tão feia que achei que nunca seríamos amigos.

— Bem, mas já somos amigos. Conte-me sobre você.

— Sou atriz. Não, mas não é esse tipo que você está pensando. Estou nos palcos desde os seis anos de idade, me virando para todo lado!

— Não entendi. — falei intrigado.

— Nunca viu crianças acrobatas?

— Ah, agora entendo!

— Sou americana, mas passei a maior parte de minha vida na Inglaterra. Estamos com novo show em cartaz...

— Estamos?

— Minha irmã e eu. É um espetáculo que mistura canto e dança, incluindo algumas falas e números tradicionais no meio. É uma ideia bastante inovadora e tem tido grande receptividade. Vai render um bom dinheiro...

Minha nova conhecida inclinou-se para frente e discursou com vontade. Usou muitos termos profissionais que eu não entendia. De qualquer modo, interessei-me gradativamente por ela. Parecia uma mistura curiosa de menina e mulher. Embora se expressasse de maneira perfeitamente articulada e autossuficiente, deixava transparecer uma curiosa ingenuidade em sua atitude em relação à vida e em sua profunda determinação em "fazer as coisas acontecerem".

Passamos por Amiens. O nome me despertava muitas lembranças. Minha companheira parece ter percebido o que passava por minha mente.

— Pensando na guerra?

Aquiesci.

— Você lutou na guerra, é isso?

— E como. Fui ferido uma vez e, após a campanha do Somme, fui declarado inválido. Hoje sou uma espécie de secretário particular de um membro do Parlamento.

— Puxa! Isso é o que chamo de usar a cabeça!

— Não, não é. Há pouca coisa a se fazer. Às vezes preciso de apenas umas duas horas por dia para dar conta do serviço. E o trabalho é chato também. Na verdade, nem sei como seria se não me dedicasse a outras coisas.

— Não diga! Você coleciona insetos?

— Não. Divido casa com um homem muito interessante. É um ex-detetive belga. Ele trabalha como detetive particular em Londres e vem se saindo muito bem. É um homenzinho e tanto. Maravilhoso. Em alguns casos, ele provou estar certo exatamente onde a polícia estava cometendo erros.

Minha companheira ouvia com olhos cada vez mais arregalados.

— Puxa! Que interessante! Adoro crimes. Vejo todos os filmes policiais. E quando tem algum crime acontecendo, devoro todos os jornais.

— Lembra-se do caso de Styles? — perguntei.

— Deixe-me ver... foi aquele da velha senhora envenenada? Em algum lugar em Essex?

Confirmei.

— Aquele foi o primeiro grande caso de Poirot. Sem ele, o criminoso certamente teria escapado ileso. Foi um emocionante trabalho de investigação.

Empolgado, acabei descrevendo os detalhes até chegar ao final triunfante e inesperado do caso.

A moça me ouvia estupefata. Ficamos tão absorvidos pelo assunto que o trem chegou à estação de Calais sem que nos déssemos conta.

Contratei alguns carregadores e saltamos para a plataforma. Minha companheira me estendeu a mão.

— Até logo! Vou prestar atenção no meu linguajar da próxima vez.

— Oh, mas certamente nos encontraremos no barco para a travessia do canal, não é?

— Talvez eu não vá. Preciso verificar se minha irmã embarcou em algum lugar, afinal. De qualquer forma, obrigada.

— Oh, mas vamos nos ver de novo algum dia? Você não vai ao menos me dizer seu nome? — perguntei, quando ela já se afastava.

Ela virou o rosto para mim.

— Cinderela — e riu.

Mas nem me importei com quando e em que circunstâncias veria Cinderela outra vez.

O assassinato no campo de golfe (1923)Where stories live. Discover now