Café de cevada

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Deu uma última olhada no espelho, e conferiu se o cabelo estava em ordem. Pegou suas duas sacolas e saiu, fechando a porta com cuidado. Ganhou a rua e resolveu passar na padaria do mercado antes de voltar pra casa.

Depois que atravessou os dois pontilhões, desceu da bicicleta, e foi subindo a suave ladeira com rua de saibro. Mais um dia de trabalho vencido. A vida não está fácil. Antes fazia faxina todos os dias. Hoje é só a cada quinzena, ou uma vez ao mês. Tem semana que fica sem serviço. Precisa escolher se paga a água ou a luz.

Entrou em casa e foi preparar um pouco de café de cevada. Valdivino, seu marido, já havia saído, pois entrava no serviço às dezoito e ia até às seis.

Quando foi colocar a caneca sobre a mesa, percebeu a presença de um pequenino embrulho, no qual estava escrito 'Para Alzira'. Até esquecera que hoje era seu aniversário.

Abriu o pacotinho e encontrou um boneco de plástico injetado vestido com a camisa do São Paulo. 'Esse Val', pensou com um sorriso envergonhado. Colocou o bonequinho ao lado da fotografia da mãe, em cima da televisão. Dona Áurea. Há quanto tempo não a via. Sua filha mais velha tinha dois anos quando se mudaram para a capital paulista. Já o caçula, Dona Áurea não chegou a conhecer. Só por uma foto, enviada pelo correio.

Buscou as panelas e começou a fazer a janta. Lembrou que precisava pagar a mensalidade do clube. Pegou a lata de leite em pó vazia, que usava como cofrinho. Contou cédulas e moedas. Só faltavam dez contos pra completar o valor.

A mensalidade era cara, mas dava direito a assistir a todos os jogos. Eram são paulinos de carteirinha, se eram.

Ligou o rádio e a televisão, e foi varrer a casa. O chão de terra batida fazia um poeirão, que só não era pior, porque usava um tapete bem grande, que ganhou de uma das patroas.

Olhou novamente para a fotografia da mãe. Queria muito visitá-la, mas a passagem de ônibus até a Bahia era muito cara, e teria que ser pra quatro. Quem sabe, se Deus ajudasse, no Natal do ano que vem, pensou.

Quando estava aguando as plantas, viu Vinícius chegar da escola. O filho entrou em casa e jogou a mochila na poltrona. Deitou no sofá e ficou a assistir a televisão. 'Que é esse boneco ali, mãe?', perguntou apontando o dedo. 'Seu pai. Hoje é meu aniversário, não lembra?' Vinícius desejou parabéns à mãe, sem levantar do sofá.

Alzira voltou pra cozinha e olhou o relógio. Pegou um pedaço de pão e um pote de geleia, pois Analu logo estaria em casa. Ela ia bem nos estudos, e desde pequena já ajudava cuidando dos filhos das vizinhas. Como o sonho de Alzira era ver sua filha numa faculdade, em uma das gavetas guardava o carnê de um título de capitalização.

Olhou para a fotografia da mãe e para o bonequinho de plástico injetado. Não dá pra se ter tudo na vida, pensou.

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