A Morte Branca

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        Considerando a dor excessiva que estou sentindo no topo da barriga, acredito que alguém veio verificar se eu estava morto. Não sei dizer ao certo se o que me atravessou foi uma lança ou uma faca; não conseguia olhar para baixo e, mesmo que conseguisse, veria minhas entranhas espalhadas por aí, o que não me alegraria muito. Tudo que eu vi quando abri os olhos era o branco da neve caindo sobre meu rosto, mas havia apenas isso - não havia mais sofrimento, não havia mais som, não havia mais sensação nas pontas dos dedos. Só havia o frio e o pensamento constante de que, em breve, haveria também a morte.

Do meu lado, nossa carroça está tombada e em chamas. Eu era responsável por escoltá-la em segurança para a cidade vizinha, mas você já deve ter percebido que não fui bem sucedido. Estávamos preocupados de que alguém saltaria do meio das árvores e, se fosse o caso, estaríamos muito bem prontos; porém ninguém se atentou de que o perigo pudesse vir de cima e, como se o céu fosse nosso guarda-costas, nós confiamos nele por toda a caminhada. Eu me esqueci que o céu nada faria por nós.


Eu senti então um calor confortável me envolver e me acariciar, como um cobertor de lã em uma noite de inverno, e antes que eu pudesse pensar que a morte havia finalmente chegado, senti também o toque leve de mãos macias e um pano úmido. Duvidei por algum instante que alguém pudesse estar limpando minhas feridas, pois não haviam tantos loucos assim andando pela estrada nessa época do ano. Mas o calor aumentou e eu pude abrir os olhos; minha primeira visão foi a de uma mulher bela como eu jamais havia visto, sem roupas, mas com muitas penas brancas espalhadas pelo corpo. Sua imagem se perdia de certo modo com o céu acinzentado e eu demorei para encontrar algum sentido naquelas formas.

- ... perdão? - não havia muitas forças para falar, mas sempre existem forças para ser um cavalheiro. A voz dela ecoou em meio aos zunidos que eu havia me acostumado.

- Eu pensei que pudesse estar com frio, então vim te dar um pouco do meu calor - ela não tinha o mesmo semblante guerreiro de todas as outras, mas portava um sorriso gentil que me causou um estremecer confortável de paixão.


- Bom, está bem frio mesmo - eu tentei sorrir, mas sangue saiu da minha boca e eu me envergonhei disso. Ela riu e limpou o líquido vermelho dos meus lábios, para que eu pudesse voltar a dizer: - O que são vocês?

- Somos harpias - ela me olhava como uma amante apaixonada, estando constantemente passando aquele pano úmido em meus ferimentos e limpando as cascas grossas de sangue do meu rosto. - Meu nome é Ihria, e o seu?

Demorei um pouco para entender que ela realmente estava perguntando meu nome. Não era o melhor momento do mundo para isso.

- Balthazar - minhas forças novamente saíram do corpo e mal consegui completar a frase. Pretendia fazer uma piadinha, mas optei por ficar quieto.

Considerando que em nenhum momento ela moveu meu corpo e nem sequer retirou aquilo que havia atravessado meu estômago, eu pensei que deveria perguntá-la, ainda que as palavras tivessem saído mais como um amontoado de grunhidos.


- Você... Veio me salvar?

- Salvar? - ela sorriu novamente, me fazendo estremecer como um admirador correspondido. - Não, desculpe. Apenas pensei que você estava muito triste, deitado no meio dessa neve.

Eu tentei assentir com a cabeça, em vão. Pude ainda perceber quando ela se colocou a cantar uma canção bem baixa e arrastada, mas nesse momento, eu já não via nada além do branco do lado de fora, misturado com a escuridão que havia aqui dentro. Não pude esquecer daquele rosto sublime que havia me afogado em uma paixão tão grande, e em meus últimos segundos, desejei que pudesse viver mais, para conhecer mais sobre ela e, quem sabe, torná-la parte de minha vida.


          No fim, aquela morte não foi a pior de todas.

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⏰ Letzte Aktualisierung: Oct 01, 2019 ⏰

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Dia 1 - Harpias: A Morte BrancaWo Geschichten leben. Entdecke jetzt