..............................

Chegou o dia da volta ao trabalho. Enfim voltei para a minha casa. Modo de falar... Nem sei se ainda conseguirei viver nesse lugar. Eu e Amanda conseguíamos pagar, mas eu sozinha? Besteira, nunca daria conta. Ela recebia mais que eu, ela trabalhava mais que eu. Para falar a verdade eu ainda sou considerada estagiária na editora.

Glória ofereceu para eu ir morar com eles. Mas não posso, não quero viver debaixo dos braços deles. Vivendo da lembrança da nossa Amanda. Respiro fundo e entro no cômodo. Pareceu aquelas cenas de filme, todos, sem exagero, todos se calam assim que me veem. Alguns com olhares penosos, outros com compaixão, vários com julgamento. Talvez até me culpem, afinal eu estava no volante.

Caminho de cabeça baixa, atenção nunca foi o meu forte, pelo menos não aquele tipo. Os cochichos começam, mas não ligo, vou direto para a minha mesa, deixando que a sensação de incapacidade passe. Voltar a escrever, editar, ler... Isso vai me ajudar, tenho certeza, essa é minha segunda paixão, não vai suprir a perda da primeira, mas vai me ajudar a superar.

- Voltem ao trabalho, perderam alguma coisa aqui?

Escuto a voz da minha melhor amiga. Liz, aquela mulher me ajuda em tudo, sinto que sempre posso contar com ela. Teoricamente é minha chefa, mas nunca nos tratamos assim. Ela que conseguiu esse emprego para mim. Seu tio é dono da editora. Ela se tornou Editora Chefa por merecimento, apesar do parentesco.

- Obrigada, loira. – Ela sorri para mim.

- Como você está? - Não precisou de resposta, apenas meu suspiro falou por mim. Ela também era muito amiga de Amanda. – Fico feliz que tenha voltado.

- Não sei se estou feliz em voltar, mas... É o certo. Preciso seguir minha vida.

- Não posso tentar entender sua dor. – E lá está o olhar de pena, ele é inevitável. – Mas saiba que pode contar comigo para qualquer coisa.

Nesse momento tenho uma ideia. Ela pode me ajudar, ela tem contatos. Passei cinco meses parada, pensando, sofrendo, definhando. Por isso Artur foi o responsável por tudo relacionado ao acidente. Quando tentei questioná-lo sobre o outro carro, ele mal pôde falar, tamanha a emoção. E com certeza não posso perguntar isso a polícia, seria muito óbvio, até pelos motivos que quero saber. Caso algo pior aconteça, não serei suspeita.

- Quero te pedir um favor.

- Claro.

- Quero informações sobre o outro carro. – Ela franze o cenho. – Sobre o outro carro do acidente.

- Mas...

- Por favor... Eu preciso saber.

Sei que ela está em dúvida. Sei também que estou usando meu sofrimento para conseguir isso, pois Liz não me negará essa ajuda, não ela.

- Só não faça nenhuma besteira.

- Eu não vou, só... Eu preciso saber.

Ela assente, então sai de perto de mim. Não sei se soei convincente, mas não importa, agora só preciso da sua ajuda para conseguir essas informações. Após isso pensarei no que fazer, no momento só me reta fazer uma coisa: trabalhar, isso também compete escrever. A única coisa que faz parar de pensar nela, ou em alguns momentos a coisa que mais me faz pensar no amor da minha vida.

..............................

Lá se vai mais um mês. Troquei de apartamento, um menor e que eu possa pagar. Muitas coisas de Amanda foram para a casa de Glória e Artur. Não que eu não quisesse comigo, mas eram muitos livros, artigos, trabalhos. Ela tinha apenas trinta anos, mas era querida por todos os seus alunos e companheiros do trabalho, mais um motivo para admirá-la.

Seis meses ainda não foram suficientes para a dor passar, acho que nunca passará. Meu coração está dilacerado. Arruinado para qualquer outro sentimento. Nunca mais amarei. Esse pensamento me perseguiu por um tempo. Mas é aquele venho ditado: Nunca diga nunca.

O trabalho vem levando todo meu tempo, o que é bom. Ainda cobro Liz pelas informações, acho que ela já sabe, mas não quer me falar. Porém eu preciso saber. Quero entender. Necessito de vingança.

- Você já sabe.

Digo assim que entro em sua sala. Ela me encara e respira fundo. Não é preciso muito para ela entender do que se trata. Solta a canela com a qual escrevia e se apoia com os cotovelos na mesa.

- Senta. – Faço assim que ela aponta para a cadeira em sua frente.

- Por favor...

- Porque você quer tanto saber disso? Michele...

- Eu só quero entender. – Suspiro, de certa forma não estou mentindo. – Essa pessoa foi responsável pela morte dela, Liz. Não consigo parar de pensar naquela luz, naquele farol vindo para cima da gente, batendo de frente. Quero dar um motivo, dar um rosto, parar de pensar apenas nesse farol, que seja uma droga, mas eu preciso disso.

Ela continua me encarando. O olhar penoso continua em seus olhos. Fazendo-me entender que estou ganhando essa batalha. Liz pode não concordar, mas eu sei que sua pena, sua dor é mais forte. Ela me ama, assim como eu a amo, mas eu amava muito mais Amanda, ainda a amo, aquilo não vai mudar, ninguém vai mudar.

- Tudo bem. – Ela abre a gaveta e me entra o envelope. – Só... Por favor, não estrague sua vida por isso.

- Eu não tenho mais vida para estragar.

Então levanto e saio. Sei que ela entendeu o que quis dizer. Sempre deixei clara a minha posição em relação ao momento em que estava. Em como me sentia com toda essa dor, essa solidão. Liz, Glória, Artur, até alguns colegas de trabalho tentam me animar, mas nenhum conseguiu me dar um motivo para sorrir, para viver.

Talvez essa seja a minha realidade, não conseguir viver. Talvez eu tenha vindo ao mundo para isso, para me vingar da morte de um inocente. Não tenho família. O trabalho não me trouxe a satisfação esperada. A vida me deu, mas também tirou o meu maior motivo de felicidade, com certeza não tenho porque continuar viva.

Quando chego à minha mesa logo trato de ler os papéis. Três pessoas no carro, irmãos. Bruno, Breno e Beatrice Gomes. Meu corpo está quente, acelerado, completamente a mercê daquela sensação ruim de saber os nomes das pessoas responsáveis pela morte de Amanda.

Leio tudo com atenção. Breno de dezessete anos, Bruno de vinte e cinto e ela... Beatrice de vinte e sete, a responsável pela direção. A pessoa que deixou aquele carro perder o controle e bater com o meu. A mulher que teve a maior parte da culpa pela morte do amor da minha vida.

Meus dentes travam ao ler. Uma loira, rica, filha de fazendeiro, que pagou fiança, na verdade nem chegou a ser presa. Não há indícios de que ela estava bêbada, mas não justifica, ela era culpada, eu pensava assim. Eu sou uma mulher negra, cabelo afro, em grande parte amarrado para cima, orgulho-me da minha cor, da minha vida, mas lá está a forma mais hipócrita da diferença social.

Essa tal Beatrice é loira, pele branca, olhos claros, de família rica, ela saiu impune, se fosse o contrário eu apodreceria na cadeia, quem ia ligar? Não posso negar a minha indignação. Sinto na pele os olhares racistas, a sensação de diminuição social, agora que perdi Amanda não posso me calar, não dessa vez, não tenho mais o que perder. A vida já me tirou tudo. Que se foda.

- Beatrice Gomes, estou indo atrás de você.

Passo a minha mão por sua foto anexada no arquivo. Seja lá o que o destino me preparou, eu preciso estar frente a frente com essa mulher, preciso olhar em seus olhos e deixar que minha raiva, meu ódio saia. Sinto que vim ao mundo para isso, dessa vez não vou contra o que meu coração pede para eu fazer. 

SurpreendidaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora