Capítulo 3- "Sereias e Enchentes"

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Tenho uma confissão séria a fazer: eu acabei de dormir pelos últimos três horários sendo eles dois de física.
Se tem algo que pode me descrever bem, é a minha capacidade extraordinária de dormir e ter sonhos lúcidos em lugares inusitados. Meus lugares preferidos englobam as carteiras desengonçadas da escola, o carro (preferencialmente com a cabeça batendo no vidro) e em filas de supermercado.
Eu não sei o que acontece comigo, eu só tenho muita dificuldade de dormir à noite pois meus pensamentos se comportam como uma colmeia em chamas, mas durante o dia eu apenas desligo. Curto circuito total. Mal consigo ter alguma conversa decente antes das dez da manhã, quanto mais me manter desperta.
Eu não sei quantos dias faltam para o enem, mas já sei que não vou passar. Não quando tudo que eu consigo pensar é em como o garoto do metrô sabia meu nome. Depois de tanto rebobinar aquele pequeno trecho de 45 minutos do meu dia, decidi que não iria descobrir tão cedo assim.
Acordei no segundo recreio apenas para ter algumas más notícias. Aparentemente, meu professor favorito foi demitido. Ele dava aula aqui do sexto ao terceiro ano e era o tipo de pessoa excepcional que jamais deveria ser demitida.
"Isso foi obviamente um caso de homofobia!" Tom disse um pouco alto demais na rodinha. Detalhe: não tinha nada de óbvio em sua afirmação.
"Tom, não tem como saber, a diretoria não vai dizer, é antiético ou algo do tipo." Eu disse neutra e ele só revirou os olhos.
"Talvez ele esteja certo Mabs, o Gregório jamais fez nada que não fosse impecável. A secretária do diretor disse para a gerente da cantina, que disse para Giovanna, que foi por causa de reclamação de algum pai do sexto ano. Talvez eles implicaram com o fato dele ser gay, você sabe como os pais conseguem ser insuportáveis por aqui." Letícia disse a primeira coisa inteligente do dia com sua típica fundamentação de fofoca.
Eu não sei se é porque estudo em uma escola particular, mas por aqui parece que essas questões importam demais. Sexualidade, condição financeira, etnia, identidade de gênero, são subcategorias implícitas à tão famosa hierarquia escolar. Honestamente tenho preguiça de tudo isso, e odeio quando sou sempre apontada como a única responsável por exemplificar a diversidade que tanto tentam vender por aqui. Duvido muito que teria essa bolsa se não parecesse do jeito que pareço. Linda, de toda forma.
Na volta para casa varri meus olhos por todo o vagão. A presença de um vendedor de balas, uma moça de terno e uma idosa com uma criança não me permitiram descrevê-lo como vazio. Eu nunca senti um misto de sentimentos tão ridiculamente opostos ao mesmo tempo. Ao sentar no meu lugar, tive que abanar para longe o híbrido de frustração e alívio que tentava me bicar a todo instante.
Diego, O Conselheiro. Adequado e cômico. Normalmente, se alguém que não me conhecesse saísse me dando conselhos aleatórios eu o chamaria de tudo, menos de conselheiro. Eu sei, não deveria sentir saudades de alguém que acabei de conhecer, mas eu realmente queria ouvir o que ele teria a dizer sobre o meu título. Seria eu Mabel, O Acidente, ou Stella, O Sol?
Comprei um chiclete de blueberry antes de descer e nem sei porquê.
[...]
O Sol não nasceu ainda e já estou perambulando pelos túneis. Dessa vez vou gravar meu diário aqui mesmo. Não sei se O Plebeu estará naquele vagão novamente e não quero que ele escute meus áudios. Não quando eu nem sei como ele sabe o meu nome.
"Ontem um cara estranho me abordou no metrô. Nada demais, só foi estranho e incômodo. O nome dele é Diego. Gregório foi demitido e o Tom acha que foi homofobia. Meu pai me ligou depois de dias sem dar notícias. Ele tava bêbado, pude sentir o hálito inflamável pelo telefone. Fiz pão com linguiça e molho de pimenta defumada. A agência funerária ligou hoje de novo e eu considerei parcelar o pacote." Disse e guardei o celular na mochila.
Desci as escadas e não quebrei o dente de novo. Olhei para os dois lados e entrei no vagão 407, linha azul. Inspirada pelo nome, decidi que hoje ele seria um pedaço do mar.
Nadei até a janela e percebi que Diego deixou o meu lugar vazio. Suas escamas eram pretas mas brilhavam em roxo e verde, como o casco de um besouro bonito. A cauda de tritão jogada pelo chão, desleixado e fazendo mal para a própria coluna.
No reflexo da janela, eu era feita de ouro e usava grampos com pérolas e pentes de marfim. Desejei poder arrancar cada uma de minhas escamas, derreter e vender as barras de ouro, podendo finalmente sair de casa com a minha mãe.
A fantasia acabou quando ele cortou o silêncio.
"Lá em Belo Horizonte o metrô só tinha uma linha, então eu nem usava. Me tire uma dúvida, há chuva suficiente que faça esse lugar inundar?" Perguntou ao meu lado e eu parei para pensar.
"Não. Não sei como ela foge, mas sei que aqui tá sempre bem seco." Eu disse e ele sorriu.
"O que você quer fazer da vida?" Ele me perguntou e eu pisquei em pânico com a pergunta.
"Por quê?" Perguntei tentando desviar do abismo que era ter que responder àquela pergunta.
"Você disse que não sabe para onde a chuva 'foge', isso é bem algo que um escritor diria, você já considerou?" Ele remexeu enquanto falava, soltando as palavras com cheiro de chiclete.
"Não posso escrever livros se não consigo ver as palavras na ordem que elas deveriam estar." Disse pensando na mancha que percorreu a minha infância, a dislexia.
" E qual a graça dos livros se eles não forem confusos? Eu acho que você tem potencial, Stella." Stella. Aí estava o apelido.
"E eu acho que você tem potencial para ser detetive particular." Me virei e o olhei acusatória.
"Que?" Ele disse com as sobrancelhas franzidas.
"Como você sabia que meu nome era Mabel?" Perguntei olhando-o nos olhos.
"Eu nunca disse que seu nome era Mabel. Eu disse que você deveria se chamar Stella. Mas agora que sei o seu nome, não consigo associar esse rosto à mais nada que não seja Mabel. Obrigado por estragar tudo." Ele me respondeu e eu não engoli.
Irritada, me encostei mais no banco e fechei os olhos para não ter que olhar para aquela cara de debochado dele. O que foi muito pior, devo dizer.
De olhos fechados, cancelei um dos meus sentidos dominantes, e transformei o ambiente em um inferno de chamas crepitantes. O que aconteceu foi o seguinte, meu maldito nariz se manifestou. Senti o cheiro de blueberry primeiro, depois o perfume cliché de fundo amadeirado e então o amaciante de bebês que foi utilizado para lavar aquele moletom. Insuportável, tudo que não pude ver, pude sentir. Deus amaldiçoe os genes atentos de cozinheiras que passaram pela minha família.
Arregalei os olhos e o encontrei rabiscando aquele caderno novamente. Mas ele estava olhando para mim e isso pareceu ser tão estranho.
"Por favor não me diga que estou sendo sua musa inspiradora hoje, não passei nem rímel." Suspirei e disse rabugenta.
"Acredite em mim, se tivesse passado eu jamais teria te escolhido para ser minha musa inspiradora." Ele bagunçou os cabelos que já estavam impecavelmente bagunçados antes disso.
Me inclinei sobre ele apenas o suficiente para poder espiar a folha rabiscada. O desenho era impecável e absurdo. Eu estava pendurada de cabeça para baixo em uma das barras de apoio do vagão enquanto todo mundo estava sentado nas janelas. Era como se houvessem três centros de gravidade ao mesmo tempo, sugando todo mundo para as bordas, eu ali, pendurada, livre de qualquer superfície, os cabelos voando por toda parte.
"Uau." Eu disse. " O que significa?" Quis entender.
"Não faço ideia, só saiu." Ele respondeu e eu simplesmente fiquei abismada com a genialidade da mente de um artista. A pessoa é tão babaca que nem sequer se esforça para produzir uma obra de arte, nem ao menos pensa, ela só espirra uma ideia e faz esse tipo de coisa.
"Mentira. Se fosse tão fácil assim o motorista desse vagão estaria em sua própria exposição em Nova Iorque, não aqui." Expandi minha indignação.
"Sabe o que eu acho? Que a arte não é sobre as ideias mais difíceis de serem pensadas, mas sobre quem as pensou primeiro e teve coragem de executar."Ele falou como se tivesse comido toda a razão do mundo no café da manhã.
"Artistas são psicopatas loucos. Não há exceções. É humanamente impossível projetar esse tipo de coisa assim tão naturalmente." Bati o martelo e me contentei com a minha completa inutilidade artística.
"Se você diz, deve ser verdade." Ele abriu outro chiclete fedorento.
"Você vai mesmo vir aqui todo os dias?" Perguntei meio que pensando em voz alta.
"Serão dias de trilhos longos, Stella." Ele respondeu sem responder.
Quem é você?

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⏰ Última actualización: Aug 17, 2019 ⏰

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