Capítulo 1- "A Masmorra"

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A Masmorra tinha cheiro de cerveja grudenta e chiclete velho colado nas mesas. Decorada com luzes de dramaturgia azul e vermelho, seria até suportável se não fossem pelos adolescentes descontrolados que a visitavam para soltar seus gemidos esganiçados nos microfones de espuma esfarelada.

Eles vinham de todos os formatos e sons, embalados em roupas de algodão estampado e brincos de qualidade oxidativa duvidosa. Todos acompanhados de suor, lágrimas, destilados coloridos artificialmente, carteiras de identidade falsificadas e amigos pendurados nos chaveiros.

Eu, Letícia e Antônio nos sentamos na mesma mesa do canto esquerdo que sempre nos sentávamos, descontando o inevitável fracasso da prova de física debochando daqueles que se aventuravam a cantar alguma música de até 1985 na famosa máquina de karaokê da Masmorra.

Honestamente, eu odiava aquele lugar. Parecia uma espécie de gruta do inferno onde todo mundo gritava e passava mal e eu não sou a exata fã da idade média. Letícia estava à duas doses de passar de bêbada-feliz para bêbada-sentimental, e eu estava aproveitando meus minutos remanescentes sem choradeira enquanto os dois discutiam sobre qual professor deveria ter a vida sexual mais agitada.

"Obviamente a Sônia, você já viu como ela volta do segundo intervalo? Aquele cabelo bagunçado não me engana, eu tenho certeza que ela e o Henrique-da-educação-física tem um rolo." Antônio apresentou a tese inicial da trigésima fofoca da noite.

"Não, cara, me escuta, é o Carlos Alberto. A melhor amiga da minha irmã mais velha estudou no Central, o outro colégio que ele dá aula, e mano, ela me jurou que viu ele e um outro cara bem... err... carinhosos. Se ele for bi, ele tem que ser o mais ativo do grupo." Letícia falou gesticulando e engolindo a sua bebida a cada conjunto de sílabas, uma das pernas sobre a mesa de plástico já meio quebrada.

"Então você tá necessariamente assumindo que todos os bissexuais são promíscuos? Por quê?E por favor não me diga que é porque eles têm o dobro de chances de conseguir lucrar." Antônio disse com o seu tom de voz sensato, de quando quer parecer ser inquestionável. E por preguiça, não questionei mesmo.

"Se eu fosse bissexual eu seria rejeitada por todo mundo." Murmurei baixinho, sem intenção de prolongar a polêmica.

Os dois continuaram a conversa lá fora porque Letícia insistiu que precisava fumar e Antônio foi junto porque aparentemente, justificar seu ponto de vista valia a pena todo o incômodo da presença horripilante da fumaça.

Por outro lado, fui deixada com a companhia do meu copo de água (a única coisa de graça no Menu, talvez porque era da pia), minha ansiedade e as poeiras flutuantes.

Simpáticas, rodopiavam por toda a parte, refletindo o carmim e o ciano artificial dos holofotes musicais. Pousando em todos os lugares, mas nunca em mim. Não, eu jamais seria afetada por todos esse germes aéreos, por mais belos que sejam, prefiro evitar pensar na minha quietude de hoje e renegar a minha postura de estátua acumuladora de pó. De qualquer forma, levaria muito tempo para tirar todo esse pó do meu cabelo.

E enquanto eu me deixei levar na correnteza dos meus pensamentos vazios, senti outra voz na minha cabeça, e nesse momento eu pensei: Finalmente está confirmado, estou completamente e irreversivelmente louca a ponto de escutar outras vozes.

O palco estava vazio, a maioria das pessoas do grupo da outra mesa foi para fora tirar um gostinho do ar puro mais poluído do país. Mas a voz era clara para mim, como se estivesse sendo sussurrada literalmente para dentro de mim.

Tomei um gole da água duvidosa e fechei os olhos me permitindo aproveitar a beleza da minha recém descoberta esquizofrenia. Macia e rouca, como se tivesse aproveitado uma boa dose de uísque, a voz fluiu pelas correntes de ar na minha frente. Tingindo-as de amarelo e laranja, a melodia do garoto fantasma me preencheu com um cheiro de algodão doce e calor. A música era em inglês e eu gostei de não ter entendido as palavras pois elas não importavam, tudo que importava era aquela voz.

Eu fui mesmo capaz de imaginar o som dos anjos?Assim, tão sóbria quanto uma porta?

Olhei ao redor e o palco continuava vazio, só eu estava aqui dentro. Olhei mais uma vez, duas, três, e então me ocorreu de checar a parede atrás de mim.O que eu jurava ser concreto e tinta descascada era vidro tingido com tinta em spray preta por trás de uma cortina vermelha. Um cômodo escondido.

"O que que foi Mabel?" Tom me perguntou com uma cara esquisita.

"Vocês sabiam que A Masmorra tinha uma sala privada?" Perguntei ainda surpresa de minha descoberta.

"Acho que saberíamos se tivesse, somos VIP aqui..." Letícia respondeu com o que eu interpretei ser maquiagem borrada de choro no olho esquerdo, e por um segundo me perguntei como aquele papo sobre professores a levou a isso.

O Fantasma parou de cantar e eu não tive nenhuma prova do que aconteceu. Para variar, Mabel é mais uma vez a doida da festa.

Tom me encarava de braços cruzados, revirando os olhos toda vez que Letícia respirava fundo, fazendo muito esforço para não chorar mais. E eu quase ia assumir o papel de conselheira, mas minha visão periférica viu um vulto saindo de dentro do balcão. Durante os dois segundos que pude ver, captei apenas a blusa de mangas compridas preta e laranja. Nem ao menos consegui vê-lo direito e me castiguei por não ter o talento necessário para juntar os pedaços em um desenho.

Antônio não aguentou ter que lidar com os dramas de Letícia e decidimos ir para casa. Horas depois, na escuridão do meu cubículo privado, vi o amarelo dançando por cima de mim, como dragões chineses voando, e imaginei aquela voz do meu lado, cantando para eu dormir.

Em Mercúrio Tudo QueimaOpowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz