O corpo do Shunsen permanecia no mesmo lugar de onde ouvi suas últimas palavras, não muito longe do seu predestinado e filhote.

Mesmo exausto, eu arrastei Shunsen e seu pequeno núcleo para o conforto eterno do mar. Eu devia esse tanto ao ele.

Seguindo o meu caminho eu desviei até o começo da floresta, onde Gryphon me defendeu com sua vida. Ele ainda estava jogado em meio às árvores eu não imaginava como arrastá-lo até o mar. Curiosamente o corpo da Suelen não estava ali com ele.

Um flash de esperança aqueceu meu peito. A mãe do Hian estava viva? Eu corri para a casa do Hian, me sentindo um idiota por ter me esquecido do plano do Gryphon. Os irmãos do Hian estavam escondidos nos baús e a Suelen com certeza voltara para eles.

Eu entrei rápido na casa do Hian, sorrindo como um otário. Logo depois meu sorriso se dissolveu assim como qualquer calor que ainda houvesse na minha alma.

No canto da casa havia um baú todo perfurado pelos buracos da morte. A tampa estava aberta e os irmãozinhos do Hian pendurados na borda, como se seu último esforço tivesse sido tentar escapar do esconderijo condenado.

Se eu não enlouqueci, foi por perceber que Hian não estava entre eles. Só então eu me lembrei do meu aquário de brinquedo. E então eu percebi algo que quase me fez cair no chão.

Hian ainda estava vivo. Aqueles humanos o levaram embora dentro do aquário, mas por que e para onde? Só havia um jeito de descobrir.

Com pressa eu devolvi os irmãozinhos do Hian para dentro do baú e fechei a tampa, prometendo voltar para eles e para todos os outros mais tarde. Eu precisava ser rápido antes do vento apagar as marcas das rodinhas do aquário.

Eu corri para fora decidido a resgatar o Hian, mas assim que eu deixei a casa eu travei no lugar, sem acreditar nos meus olhos.

Alguém estava saindo da floresta a passos arrastados e com os ombros caídos. Seus cachos brancos brilhavam sob a luz da lua e mesmo à distância eu podia notar o brilho intenso de suas íris vermelhas.

Khaligor Faroé. Por que aquele monstro havia retornado, sozinho e sem aqueles canos perigosos? Ele parecia mal se aguentar nas próprias pernas quando arrancou suas roupas justas de humano na beira do mar. Ele estava de costas para mim e contra o sentido do vento, não conseguiria me farejar.

Eu espiei ao meu redor e encontrei um pedaço de pau fincado na areia. Não era muito comprido e nem muito pesado, mas seria o bastante para atordoar aquele desgraçado antes de eu fincar os meus dentes no pescoço dele.

Empunhando a minha arma com firmeza diante do corpo, eu me aproximei suavemente. Ele permanecia de costas para mim, seria muito fácil, eu vingaria o papai e os outros mais cedo do que eu imaginava.

Alheio à minha presença, o monstro desgraçado sentou-se nas pedras baixas e deixou que as ondas atingissem seu corpo. As suas pernas desapareceram e em seu lugar surgiu uma cauda muito bizarra, era vermelha e sem escamas, com a barbatana enrugada.

Onde eu havia visto aquela cauda antes? Aliás, eu podia pensar nisso depois. Faltava muito pouco para arrebentar a cabeça daquele maldito, então eu subi com passos de pluma nas pedras logo atrás dele, e...

"Poupe-se do esforço, menino." Disse ele, sem sequer virar-se para mim. "Eu não chegaria tão longe se pudesse ser derrotado por um pivete magricelo."

Eu desarmei a minha pose, bravo por aquele cara não me levar a sério, mas também muito intrigado. Devia ser um truque, óbvio, mas nada em sua postura lembrava o sádico sanguinário que ria ao assassinar o meu clã inteiro. Diante de mim havia apenas um alfa quieto e triste, que bebia largos goles de água com um cantil para recuperar-se do que parecia ter sido um longo período longe do mar.

Era uma ideia idiota e eu sabia disso, mas eu deixei cair a minha arma e me aproximei dele, então sentei ao seu lado. A minha longa cauda de escamas douradas reluziu intensa sob a luz da lua, contrastando com sua cauda de couro aveludado.

"Por que você não me matou?" Eu perguntei para ele.

O alfa esfregou água nos ombros e manteve o olhar na própria cauda.

"Quem poderia dizer..." Divagou ele.

Eu suspirei e observei as ondas balançarem nossas caudas, me perguntando se eu havia ficado louco. Por que eu não sentia medo ao seu lado daquele cara? Algo em seu cheiro era tão familiar e ao mesmo tempo frio. Era estranho.

"A sua cauda é igual à dele." Eu falei meio que pensando alto.

"Dele quem?" Khaligor parou o cantil a meio caminho dos lábios.

"Era uma presença quase invisível, um ômega magrinho e com cachos tipo os seus, só que bonitos e volumosos. Ele me puxou para longe dos bastões de fogo e acho que me protegeu do desmoronamento do castelo, também."

Khalighor bufou, com o olhar ainda mais baixo e triste.

"Não faz sentido algum... por que ele te salvaria?"

O que ele queria dizer com aquilo? Eu não sabia de mais nada, nem do meu presente ou do meu futuro, nada.

"Vocês são os tais de selkies que o papai falou, não é mesmo? Os escravos que deveriam nos servir em Egarikena? Por que uma raça de escravos atacaria seus mestres?"

"Enfim uma pergunta de resposta fácil." Khaligor riu baixinho. "Agradeça ao chamado pelo milagre da sua sobrevivência e nade para longe daqui. Fique longe de outros como eu e você viverá um longo tempo."

"Não posso. Aqueles humanos levaram o Hian, eu preciso encontrá-lo."

"Esqueça o seu amigo. Bartolo e os outros seguiram para dentro da floresta. Em três dias eles chegarão a uma cidade humana e de lá podem desaparecer para qualquer lugar."

"Então eu só preciso ser rápido." Eu me levantei com urgência. "Em qual direção eles foram?"

Khaligor permaneceu quieto, com o olhar desfocado. Então ele apontou com um gesto da cabeça para a mesma trilha de onde ele havia saído.

"Eles já partiram há muitas horas, mas o transporte do aquário deve atrasá-los o suficiente. Um filhote como você talvez aguente uns dois dias longe do mar." Khaligor mergulhou o cantil até enchê-lo, fechou bem a tampa e o jogou para mim. "Três dias com isso."

Eu peguei o cantil de mau jeito, quase o derrubei nas pedras.

"Por que está me ajudando?" Eu perguntei.

Khaligor apenas deu de ombros e continuou observando as ondas.

Era óbvio que eu não conseguiria mais nada com aquela conversa, então eu lhe dei as costas e desci as pedras em direção à floresta.

"Ei, menino." Chamou Khaligor.

Eu me virei para ele, que me espiava por cima do ombro com suas íris de fogo.

"Quando você viu aquela alma de ômega... ele estava sorrindo?"

Que pergunta estranha. Eu revirei a minha memória para encontrar a resposta.

"Ele não tinha rosto, então não sei, mas ele pediu que eu te perdoasse porque existe uma imensa bondade no seu coração." Eu pausei por alguns instantes, observando o cantil em minhas mãos. "Não acho que ele estivesse mentindo."

Khaligor virou-se para frente de novo, observou as estrelas por um tempo e, sem dizer qualquer outra coisa, mergulhou no mar e desapareceu.

Eu segui para o lado oposto e entrei na floresta, precisava aproveitar cada minuto se quisesse resgatar o Hian a tempo.

Reinos em FloraçãoWhere stories live. Discover now