Capítulo 35

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Água gotejava ao meu redor, estalando na pedra gelada e úmida onde eu estava deitado. Por um instante pensei ainda estar na Foz da Grande Confluência, mas quando abri os olhos dei de cara com um teto de pedra negra a um palmo do meu corpo deitado.

Tudo doía. Meus braços, meu pescoço... havia hematomas na minha barriga, tufos faltando no meu cabelo enlameado e partes sem escama na minha cauda. Filetes de água escorriam pelas rachaduras no teto e empoçavam no chão coberto de entulhos, impedindo a recuperação das minhas pernas.

O espaço era muito apertado para que eu levantasse então me virei de bruços e me arrastei com os cotovelos, tentando me lembrar do que havia acontecido.

A fuga para o castelo, os humanos se afastando no bote, a explosão... eu não conseguia separar o que era lembrança do que era alucinação. A Foz da Grande Confluência foi real ou um delírio?

Enquanto eu percorria o labirinto de pedras amontoadas, com o teto cada vez mais baixo, eu fui organizando os meus pensamentos para afastar minha percepção de dor. Me arrastar sobre as lascas de pedras afiadas não ajudava o meu estado deplorável.

O meu coração disparava com a chance de eu estar me arrastando a um beco sem saída, pois eu não conseguiria dar meia-volta naquele espacinho minúsculo, mas eu segui a sutil claridade mais adiante e de repente o teto ficou bem alto. Eu consegui me esgueirar para fora, recuperar as minhas pernas e me levantar.

Ao meu lado, através uma ampla abertura, eu podia avistar as estrelas e as ondas que brilhavam prateadas sob a luz da lua. Só então eu compreendi onde eu estava e corri para fora, a fim de ter certeza.

E eu não estava errado.

Não havia restado nada do Castelo Negro. As torres, os salões, tudo desabou e em grande parte desapareceu no mar. Algumas das paredes haviam cedido umas contra as outras, formando uma espécie de caverna que me impediu de virar pasta de tritão.

Com o coração zunindo e a respiração errática, eu percebi o milagre de ter escapado da morte. Se houvera qualquer outro tritão escondido naquele castelo, ele certamente se tornara um com o mar.

Não havia mais sinal de humanos, nem mesmo traços de seu cheiro, o que indicava que eles nem sequer se importaram em voltar. E se eles não estavam por perto só podiam estar de volta em Orla das Sereias completando o seu rastro de morte, se é que havia mais alguém para matar.

As lembranças nublaram meus olhos, mas eu segurei as lágrimas e saltei na água. Eu precisava recuperar os meus ferimentos e procurar por sobreviventes.

****

Talvez fosse um erro retornar à praia tão cedo, mas o cheiro de humanos já estava distante, quase sumido em meio ao cheiro de sangue rançoso. Sob o brilho da lua podia-se ver a nuvem de moscas e os caranguejos se aproveitando do tapete de corpos, que os monstros humanos nem tiveram a piedade de devolver ao mar.

Ainda dolorido e meio roxo, eu manquei até o papai. A maré havia recuado então agora ele estava estirado na areia seca, com a boca e os olhos abertos.

Sei lá como eu tive a força de espírito de fechar os olhos do papai e puxá-lo pela barbatana até o mar. Era como estar anestesiado, ou morto apenas por dentro quando todos os outros estavam mortos por fora também. Eu não conseguia chorar, nem sequer mudar minhas expressões faciais, apenas assisti o corpo do papai afundar nas ondas e desaparecer de volta aos braços do chamado.

O esforço de arrastá-lo gastou minhas poucas energias e ainda havia tantos corpos... eu precisava dar-lhes um final digno, mas precisava da ajuda de alguém, qualquer um.

Eu caminhei ao longo da praia em direção ao vilarejo, farejando o ar pútrido na esperança de encontrar o cheiro de sangue quente. Meus tios e primos, Marlon, meus massagistas e chefes de cozinha... todos se foram. Eu passei pelos corpos Cylen e de seu pai ômega, que realmente morreram abraçados, e também pelo que restou do Trigen e do Lairon.

Reinos em Floraçãoحيث تعيش القصص. اكتشف الآن