Capítulo XVII

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É estranho, mas apesar de todos os presságios nada de especial aconteceu no Ghost. Continuamos indo para noroeste até alcançarmos a costa do Japão, onde encontramos um grande bando de focas. Vindo não se sabe de que lugar do ilimitado Pacífico, o bando estava fazendo sua migração anual para o norte, rumo às colônias de procriação do mar de Bering. E fomos para o norte com ele, arrasando e destruindo, jogando as carcaças nuas para os tubarões e salgando as peles para que pudessem enfeitar mais tarde os belos ombros das damas da cidade.

Era uma carnificina desenfreada, e tudo para o agrado das mulheres. Ninguém se alimenta da carne ou do óleo das focas. Após um bom dia de matança, o convés ficava coberto de peles e corpos, escorregadio com a gordura e o sangue que escorriam dos embornais num caldo vermelho. Os mastros, cordas e amuradas ficavam salpintados de sangue enquanto os homens nus, com as mãos e os braços vermelhos como açougueiros destrinchando a mercadoria, trabalhavam com afinco usando as facas de pelar para esquartejar e arrancar a pele dos belos animais marinhos que tinham matado.

Minha tarefa era contar as peles assim que eram trazidas a bordo dos botes, supervisionar a extração das peles e posterior limpeza do convés, e depois assegurar que o barco voltasse a suas condições normais de operação. Não era um trabalho agradável. Minha alma e meu estômago se revoltavam, e ainda assim, de certo modo, foi bom para mim fiscalizar e lidar com todos aqueles homens. Pude desenvolver a pouca habilidade executiva que possuía e tive uma consciência maior do endurecimento ou fortalecimento de caráter pelo qual estava passando, o que só podia ser benéfico para o Humphrey "Florzinha".

Havia, sobretudo, o sentimento de que eu nunca mais seria o mesmo homem depois daquilo. Apesar de minha esperança e fé na humanidade terem conseguido sobreviver às críticas demolidoras de Wolf Larsen, ele tinha operado algumas transformações menores em minha pessoa. Tinha aberto para mim o mundo do real, que sempre me causara receio e sobre o qual eu pouco sabia. Eu estava aprendendo a observar mais de perto a maneira como a vida era vivida, a reconhecer que existia o que se pode chamar de fatos do mundo, a emergir do reino da mente e das ideias e a atribuir certos valores às fases concretas e objetivas da existência.

Passei a ter mais contato com Wolf Larsen depois que entramos na região de caça. Quando fazia tempo bom e estávamos no meio das focas, todos os marujos saíam nos botes e permanecíamos a bordo somente eu, ele e Thomas Mugridge, que não contava. Mas não ficávamos à toa. Os seis botes se espalhavam em leque a partir da escuna, até que o primeiro bote a barlavento e o último a sotavento se afastassem algo entre quinze e trinta quilômetros um do outro, e navegavam em linha reta até que a noite ou o tempo impróprio os forçasse a voltar. Ficávamos com a missão de manter o Ghost bem sotaventeado em relação ao último bote a sotavento, para que todos os botes tivessem vento favorável na hora de retornar, em caso de borrascas ou ameaça de mau tempo.

Não é tarefa fácil para dois homens, sobretudo quando entra vento firme, manejar sozinhos uma embarcação como o Ghost, pilotando, prestando atenção na posição dos botes e içando ou recolhendo as velas, e precisei aprender rápido. Governar o leme foi fácil, mas subir nos mastros e erguer todo o meu peso com os braços ao deixar a enxárcia para subir ainda mais alto, isso era um pouco mais difícil. Mas até isso aprendi, e rápido, pois era motivado por um desejo selvagem de me redimir aos olhos de Wolf Larsen, de atestar meu direito de viver em outros reinos que não o da mente. Mais que isso, comecei a achar recompensador trepar até o calcês e me agarrar somente com as pernas naquela altura perigosa, vasculhando o mar com a luneta à procura dos botes.

Lembro em particular de um belo dia em que os caçadores partiram cedo, e à medida que os botes se espalhavam pelo oceano as notícias trazidas pelos estampidos de suas armas foram ficando fracas e longínquas, até sumirem por completo. Um vento muito suave soprava para oeste, mas ele deu seu último suspiro assim que conseguimos sotaventear o último bote a sotavento. Eu estava trepado no calcês e vi os seis botes desaparecerem na curva da Terra, um a um, enquanto perseguiam as focas para oeste. Ficamos parados, balançando quase imperceptivelmente no mar plácido, impedidos de segui-los. Wolf Larsen ficou apreensivo. O barômetro indicava baixa pressão e a aparência do céu para leste não lhe parecia animadora. Sua vigilância era constante.

O lobo do mar (1904)Where stories live. Discover now