A minha desculpa é que eu me acostumara com a vida sem luxos, com pouco, com sobriedade, embora estivesse naquele momento cada vez mais fácil arrumar novos objetos. O mundo voltava progredir, a Terra a girar.

Todos buscavam normalidade. Todos queriam enterrar aquele passado e ir aos bailes que estavam acontecendo com cada vez mais frequência dançar  foxtrote e comerem sanduíches de presunto. 

As mulheres estavam loucas para deixarem rodar seus vestidos de saia um pouco ampla e mostrarem as pernas  bem acima do que deveriam para os rapazes.

Mas é claro que eu não ia a nada assim, não se eu pudesse evitar. Dançar, ser tocada, mostrar as pernas ? Jamais.

E assim, uma fileira de conjuntos de saia e blusas e vestidos simples e modestos estavam limpos e passados no pequeno guarda-roupa. Todos em tons escuros.

As cotas para as roupas ainda não haviam cessado, mas já era possível escolher o que gostávamos ou cerzir peças claras, macias e diáfanas, com saias amplas, mas a sobriedade combinava mais comigo, mesmo eu sendo uma moça de 22 anos.

Mas problema da beleza é que ela é visível, a pele sensível, e nosso corpo parece sempre dominar nossas mentes e coração e mesmo que eu não gostasse, acabava mesmo assim atraindo olhares.

Às vezes muitos olhares, e aquilo sempre foi um problema.

"A Branca de neve", pensei, num suspiro triste. Alva como a neve, lábios vermelhos como o sangue, cabelos negros como o ébano...

Ah, tantas lembranças de dias normais, felizes...

Tudo aquilo parecia agora tão perdido, mas, ao mesmo tempo, presente.

Pensei o quanto ainda havia daquela menina ali, aquela menina sem amarguras que prometera lutar e cantar.

O quanto de mim ainda sonhava suspirante com príncipes? Era difícil me decifrar. O que não era difícil, desde então, desde a Guerra?

Toquei com a ponta dos dedos minha pele pálida. Podia ser a pele de uma moça que estampasse um camafeu, com minhas sobrancelhas tão espessas e os maxilares suaves. Podia ser o rosto de uma moça adorável. Mas eu não me definiria exatamente adorável. Havia uma amargura implícita em meus olhos. Os cabelos grossos e escuros estavam presos com cuidado em uma presilha, agradavelmente domados. Havia um broche com um pequeno pássaro prateado em meu peito, herança de minha avó que me criara. Eu tinha guardado aquela lembrança valiosa. Ela sobrevivera a todas as dificuldades.

Um anel simples com uma pequena gota de topázio é o único adorno, um bem não vendido, que pertencera a minha mãe. Não consegui me desfazer daquele anel, por mais que em certos momentos eu tivesse precisado, pensei, quase chorando.

Um batom suave quebrou minha palidez. Um pouco de água de colônia foi borrifada.

Não acreditava que depois de tantos anos podia finalmente usar uma água de colônia, mesmo que barata.

A guerra destrói nossos sonhos mais simples, e toda nossa noção de normalidade. Lembro da angústia daquele mundo cheirando a sabão de cinzas e cimento queimado. A visão tenebrosa dos metais retorcidos, e os barulhos terríveis do concreto quebrando.

Um mundo sem galos cantando. 

Quase todos os galos haviam morrido em Londres durante a guerra, e muitos dos cães.

Pensei em Minnie, com angústia. E em todos os animais que havíamos perdido.

Naquele rosto não se via um coração sofrido nem os segredos de dor que uma alma guardava. Talvez apenas meus olhos castanhos guardassem certa melancolia.

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