Expulsando os demônios

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Dentre a lista de afazeres Priscilla precisava dar prioridade ao que era mais importante. O quê era mais importante, afinal?

Perdida no meio daquelas lojas em labirintos, "um pedaço do céu" entre portas para um inferno qualquer, pessoas no vai e vem do dia à procura de, envolta pelos devaneios que agora lhe eram habituais e sem sentido ou pertinentes dentro ou fora,  deixou-se esquecer da lista e entrou na primeira loja de produtos de cabelo que avistou.

Adiaria as obrigações: algumas bonequinhas de encomenda para entregar. Alguns lacinhos de cabeça.  Ficaria tudo para outra hora. Hoje o dia era dela.

Assim que adentrou a atendente cuidadosamente maquiada aproximou-se empenhada em fazer a sua primeira venda do dia.

A cada produto que mostrava parecia revelar a mágica solução para todos os problemas do mundo.

O menor definitivamente eram os cabelos dela mas, naquele momento, ele criou uma dimensão maior do que poderia imaginar.

Não! Não precisava dizer isso àquela vendedora tão educada, por mais que por impulso quisesse.

Por fim, completamente exausta com a explanação sobre as fórmulas milagrosas, tomou de súbito o creme restaurador (da vida?) da vendedora piscando suavemente os olhos em agradecimento com um sorriso na boca levemente sem graça.

Dirigiu-se ao caixa num silêncio profundo sinalizando ao mundo o seu desânimo. Precisava sair dali.

Não conseguia realizar nenhum outro movimento além de colocar o cartão na máquina, digitar a senha e retirar o cartão da máquina.

- Os produtos Senhora!!!

Senhora??? Como odiava ser chamada de senhora! Não havia feito nada de extraordinário ainda. Seus dias bons tinham sido apenas dias bons. Nada de sensacional ou terrível. Dias bons. Daria tempo?

Estava tão aflita após aquela aula de beleza que só queria ir para casa. Nem a alface para a salada do jantar compraria mais e talvez Júlio nem se desse conta de que o queijo já havia mofado há uns três dias na geladeira, pelo menos.

Aquele sentimento de liberdade de dez minutos antes  foi consumido pela nostalgia da alegria.

Não que ela tivesse ido assim, de repente. Ela estava indo aos poucos,  como uns borrões. Como um abajur com aqueles botões que diminuem a intensidade da luz. Ela estava se apagando, pouco a pouco. Len-ta-men-te.

Assim que chegou no Saara, ainda podia ver as cores alegres  misturando-se aos cheiros dos pastéis que derramam aqueles caldos suculentos e gordurosos. Sempre comia dois ou três.

Agora já sentia um embrulho e só de pensar nos pastéis vinha a ânsia de vômito seguida pela ausência de cor. Preto e branco. Preto e branco. Filme antigo.

 Tudo o que mais queria era jogar o restaurador em qualquer lata de lixo mais próxima que encontrasse.

O sol estava escaldante naquele verão mas como detestava banhos frios, os fios do seus cabelos estavam extremamente ressecados.  Mas quem se importa? Ah! Aquelas mulheres do condomínio certamente.

De repente, um feixe de luz ascendeu sua alma ameaçando trazer a alegria de volta. Não era o cabelo que a incomodava. Nem o fio branco. Nem o queijo mofado na geladeira. Nem as fofoqueiras desprezíveis do condomínio. Nem Júlio.

De súbito, Priscilla parou dos passos largos que caminhavam sem direção deparando-se com uma casa de "macumba".

- Não, macumba não! – pensou alto.

- Sim!!! – uma voz baixinha a seduziu.

Entrou pé ante pé, quase se escondendo de si, e sem saber muito bem por onde começar foi pegando umas velas coloridas, alguns incensos- "traga a sua alegria de volta", defumadores, ervas... Tudo o que podia para se livrar daquela sensação.

O vendedor desta loja, diferentemente daquela outra, sequer se levantou para atendê-la.  Ficou atrás do balcão observando curioso com um sorrisinho de escárnio de canto de boca.

Precisava urgentemente exorcizar os demônios que há mil séculos a perseguiam!

Chegando em casa, antes que Júlio a surpreendesse no seu despacho de capetas, fez um fogareiro com tudo o que havia comprado, acendeu as velas, o incenso, espalhou as  pétalas de rosas brancas em uma bacia d'água pra filtrar as energias, invocou São Jorge pra batalha com o crucifixo e o defumador nas mãos e foi em cada canto da casa dizendo: -Sai capeta!!!! Sai capeta!!! Sai capeeeeeeta!!!!!

Sem saber ao certo o que estava fazendo foi seguindo por instinto aquele ritual e no final foi tomada pela certeza- firme como uma bússola que não sabe o destino, que todos os diabos haviam saído correndo de sua casa naquela sua sessão de exorcismo. Dela.

Aproveitou logo o despacho e fez também um banho de creme nos cabelos, acendeu a vela para o seu anjo da guarda e, por fim, fechou o corpo com o sal grosso.

- Benzi-me do mundo! – disse aliviada do peso dos séculos.

Jogou o queijo mofado no lixo e guardou o seu mais novo segredo! Ela sabia expulsar demônios.

Todo caco tem vidaWhere stories live. Discover now