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Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros à margem de um lago que havia nos tabuleiros.

O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a tristeza saiu de seu coração e subiu à fronte.

— Meu irmão, disse o chefe, teu pé criou raiz na terra do amor; fica: Poti voltará breve.

— Teu irmão te acompanha; ele disse, e sua palavra é como a seta de teu arco; quando soa, é chegada.

— Queres tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaraú?

— Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos pitiguaras não terá para ela mais que tristeza e dor. A filha dos tabajaras deve ficar.

— Que esperas tu então?

— Teu irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste e abandonar a cabana, sem esperar pela sua volta. Antes de partir ele queria sossegar o espírito da esposa.

Poti refletiu:

— As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro, como o orvalho da manhã amolece a terra.

— Meu irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver Iracema.

O cristão avançou. Poti mandou-lhe que esperasse; da aljava de setas que Iracema emplumara de penas vermelhas e pretas, e suspendera aos ombros do esposo, tirou uma.

O chefe pitiguara vibrou o arco; a seta atravessou um goiamum que discorria pelas margens do lago, e só parou onde a pluma não a deixou mais entrar.

Fincou o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada, e tornou para Coatiabo:

— Tu podes partir agora. Iracema seguirá teu rastro; chegando aqui, verá tua seta, e obedecerá à tua vontade.

Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partiu enfim seguido por Poti.

Breve desapareceram os dois guerreiros entre as árvores. O calor do Sol já tinha secado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta veio pela várzea seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam os campos quando ela chegou à beira do lago.

Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado, o ramo partido, e encheram-se de pranto.

— Ele manda que Iracema ande para trás, como o goiamum, e guarde sua lembrança, como o maracujá guarda sua flor todo o tempo, até morrer.

A filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem tirar os olhos da seta de seu esposo, e tornou à cabana. Aí sentada à soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que o sono acalentou a dor em seu peito.

Apenas alvorou o dia, ela moveu o passo rápido a lagoa, e chegou à margem. A flecha lá estava como na véspera: o esposo não tinha voltado.

Desde então à hora do banho, em vez de buscar a lagoa da beleza, onde outrora tanto gostara de nadar, caminhava para aquela, que vira seu esposo abandoná-la. Sentava junto à flecha, até que descia a noite; então se recolhia à cabana.

Tão rápida partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio, chamavam aquele sítio da Mocejana, a abandonada.

Uma vez que a formosa filha de Araquém se lamentava à beira da lagoa da Mocejana, uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba:

— Iracema!... Iracema!...

Ergueu ela os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia, que batia as asas e arrufava as penas com o prazer de vê-la.

A lembrança da pátria, apagada pelo amor, ressurgiu em seu pensamento. Viu os formosos campos do Ipu; as encostas da serra onde nascera, a cabana de Araquém; e teve saudades; mas ainda naquele instante, não se arrependeu de os ter abandonado.

Seu lábio gazeou em canto. A jandaia, abrindo as asas, esvoaçou-lhe em torno e pousou no ombro. Alongando fagueira o colo, com o negro bico alisou-lhe os cabelos e beliscou a boca vermelha como uma pitanga.

Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendo-a no tempo da felicidade; e agora ela vinha para a consolar no tempo da desventura.

Nesta tarde não voltou só à cabana. Durante o dia seus dedos ágeis teceram o formoso uru de palha que forrou da felpa macia da monguba para agasalhar sua companheira e amiga.

Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave não deixou mais sua senhora; ou porque depois da longa ausência não se fartasse de a ver, ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua triste solidão.

Iracema - José de AlencarOù les histoires vivent. Découvrez maintenant