Sem título, imagem acima é um spoiler.

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Assoviava uma canção qualquer, um assovio qualquer numa rua qualquer, numa cidade qualquer, num país qualquer, num mundo qualquer. Poucas importâncias e certezas, apenas o aleatório e as poesias noturnas. Gostava de andar ao acaso pelas ruas, principalmente de noite, às vezes. Via destinos intimamente entrelaçados, o destino do acaso, via as terminações nervosas, a aura de qualquer lugar que se preze, a arte cinza. Pichações, grafites, expressões de almas rebuliças e muitas vezes medíocres, o pensamento comum de uma época qualquer, o senso de normalidade e comodismo revertido por tintas e frases, cores e cheiros. Também observava acontecimentos sem explicações ou motivos, muitas vezes engraçados, mesmo que sem motivo algum. Viu dois homens, vestidos a caráter de ciclistas, roupas alienígenas e capacetes imensos como, mais uma vez, uma estátua, ou fetiche, de um povo pré-colombiano, como naquele filme do Indiana Jones, a caveira de cristal ou algo do gênero, o pior deles. Foco. Enfim, os ciclistas, não o Indiana Jones, corriam e berravam ao apostar rachas em meio às ruas enevoadas e simplórias da cidade, xingando e gritando palavras inteligíveis e, para completar, ouviam uma melodia de uma banda de metal, daquelas satânicas e pervertidas mesmo, enquanto pedalavam, aos berros. Viu também um sujeito, baixinho e careca, um verdadeiro tiozinho, no melhor sentido da palavra, sair de sua casa, uma construção antiga e mal cuidada, e começar a simplesmente caminhar, a esmo, trôpego e de olhares perdidos, em plena duas da manhã. A garota não entendera o porquê do humor do evento, mas, ainda sim, como todos nós fazemos, ela riu. Viu também motoboys, entregadores de uma franquia conhecida, conversando com seus vozeirões desinibidos e, até ouso dizer, embriagados.

"É, hoje eu entreguei 4 pizzas. Chacoalhei a coca de um corno que ficou me apressando, e só não passei o saco na pizza dele porquê não deu tempo. O viado tava esperando, olha que maluco, na frente do prédio dele já fazia meia hora." "Tem gente pra tudo." Dissera outro, não prestando muita atenção.

Afinal, a garota observava e concluía, um processo um tanto burocrático, que as ruas noturnas tinham seu charme, e talvez até mesmo o carnaval tivesse o seu, ainda que muito bem maquiado. Pois então, em que outra data tantos vagantes, loucos, meretrizes, poetas e artistas, daqueles que transformam sua vida na maior obra de arte, e todos os outros sujeitos, tão medíocres e impressionáveis, um mero rosto em meio à multidão, se encontrariam? As ruas acolhiam todos, sem distinção. Até mesmo a lua, antes escondida por detrás de camadas e mais camadas de nuvens, agora aparecia, um tanto tímida ainda, mas, com certeza, absoluta e contemplativa.

Agora Karol descia uma pequena inclinação, uma das muitas no terreno irregular da cidade, não muito acentuada, a bem da verdade. Passara ao lado dos muros altíssimos de uma imensa catedral, talvez a mais antiga da cidade, não sabia ao certo. Não era uma especialista. Era uma construção imponente, com um teto abobadado e recheado de dezenas de longíssimos bancos de madeira, pintada de uma cor qualquer, não podendo ser percebida em meio à penumbra noturna. Podia ver também uma pequena fortificação iluminada, a guarita do segurança noturno, o último bastião daquela instituição milenar. A luz acesa, atenção distraída. Enfim, o homem que lá trabalhava mal se dera conta da garota que passara, tomara-a como uma transeunte qualquer, um desses nóias que vagam pela noite, um qualquer. Voltara a seu meio cochilo, e a garota continuava sua caminhada, sem empecilhos ou distrações, sua mente voava sobre uma futilidade qualquer, pragmática.

Passara agora, à sua esquerda, por uma tendinha dessas, charmosa e benevolente com os vagantes noturnos, aqueles à procura de um telhado qualquer, que o protejam de uma tempestade ou meramente um telhado para uma noite de sono alcoólico. Estava fechada, claro. A clientela há essa hora não deveria ser forte, vampiros e vagantes noturnos não tomam caldo de cana. Ao lado da tenda, uma escada curta, ao referencial de escadas maiores, que levava até a catedral, em cima de uma elevação natural. Lá do alto, observava e julgava todos, a pretensão e soberba do último bastião da moralidade, fraca e vaga no feriado de carnaval, graças a deus.

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⏰ Last updated: Mar 15, 2019 ⏰

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Domingo de CinzasWhere stories live. Discover now