Parte 1 - Londres

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O cervejeiro imortal

Capítulo 1 - Água

Imerso em meus pensamentos, sentado no vagão lotado de metrô, vestido com roupas casuais (tênis, jeans, camiseta preta, manta cinza), sigo o meu caminho. Não é solidão, não é tristeza...é, antes de tudo, a sensação de paz que vem depois de tantos anos.

Vejo as pessoas ao meu redor e imagino a espiral de tempo que envolve a todos nós. Alguns conseguem escapar do inexorável, da morte, da doença e da solidão. Há vários caminhos para isso, mas são poucos os que descobrem a trilha.

Viagem longa, mas incomparavelmente rápida (me perco em minhas memórias de um passado remoto mas, graças a um idoso manco que para na minha frente, volto para o presente). Tudo é mais acelerado, mais intenso e, ao mesmo tempo, superficial. Não há mais introspecção, sistematização e resiliência. O mundo é uma comunidade de crianças perdidas, todas chorando por atenção, em busca de seus pais que há muito se perderam. Tempos perigosos, de consequencias imprevisíveis, mesmo para quem já viveu o suficiente.

Um homem, provavelmente nos seus 30 anos, toma uma cerveja pilsner (talvez gelada, como devem ser todas as standard american lagers) ao lado da porta de saída do vagão de metrô. É espantoso o número de pessoas que prestam atenção ao homem, alguns olhando com uma inveja perceptível. O homem sorve cada gole da sua cerveja com prazer, com aquele olhar de alegria e de descontração que somente a cerveja proporciona. Meus pensamentos não se fixam ao homem, mas apenas na cerveja e na sua história. O universo e as suas leis quase eternas estão no líquido que preenche aquela garrafa.

A cerveja sempre foi, é e será o motor da civilização, da sociedade, do avanço científico, da confraternização entre irmãos...não há força oculta maior do que aquela exercida pelas leveduras, que nos domesticou como espécie e nos ensinou os pilares do conhecimento.

Desvio os meus olhos da cerveja e de seu dono. Falta uma estação para descer. Nenhum e-mail novo no celular, apenas os convites tradicionais para organizar jantares de harmonização de pratos e de cervejas. Engraçado, recebi um convite de um amigo belga depois de tantos anos....saudades da Bélgica e de sua cultura cervejeira, sem se preocupar com regras. Muito liberal. Muito alternativa. Uma afronta para a Europa, certinha demais, preocupada demais, combativa demais, cansada demais.

Quase 20 horas em meu relogio digital. É um dos primeiros relogios digitais lançados comercialmente. Um Pulsar prateado, com display escuro como a noite e números em vermelho-sangue. Não troco o meu Pulsar por nada no mundo. Pequenos prazeres da vida.

Lembro do dia em que comprei o meu Pulsar...era uma segunda-feira de agosto, dia muito chuvoso, o ano era 1970. Recordo vivamente os fatos: estava andando pelas ruas de Nova Iorque, em minha peregrinação de cinco anos pelo continente americano, conhecendo algumas microcervejarias que estavam bravamente lutando pela sua sobrevivência em um mundo tomado pelas raivosas cervejarias industriais pós-Lei Seca, quando vi o Pulsar na vitrine de uma loja chique da Diammond's District. Era um relógio muito caro para os padrões da época, inclusive para os meus. Contudo, em minha longa jornada, cheguei a conclusão que, se um equipamento é útil e duradouro, vale o preço. Assim, gastei uma parte de minhas economias no meu Pulsar. Vendedor feliz e cliente satisfeito. Coloquei o Pulsar no pulso e segui o meu caminho, na esperança que nenhum assaltante visse a roubar o meu relógio. Eram tempos difíceis na América e mais ainda em Nova Iorque, uma cidade decadente e esquecida pelos seus habitantes.

O metrô dá o solavanco típico quando está reduzindo a velocidade. Volto ao tempo presente. Estou chegando ao meu destino, finalmente. São 20:20 h. Poucas pessoas no vagão para descer na Borough station. Os meus desvaneios cessam e me foco no caminho que devo fazer...sair da estação, caminhar pela long lane A2198, virar na primeira rua à direita e seguir até o final da segunda quadra, onde encontra-se o pub The Royal Oak London. É final de outubro, e a expectativa é grande para degustar a Old Ale da Harvey's. Caminhada bem tranquila para uma noite fria de outono.

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⏰ Last updated: Jan 27, 2019 ⏰

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