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Esperei com impaciência a próxima quinta-feira. Estava resolvido a explicar-me com Emília.

Durante o princípio da noite, conservei-me sentado na varanda; mas via, por um espelho fronteiro à porta, D. Leocádia e a sobrinha em seu lugar do costume, a um canto do salão. Depois do chá realizou-se o que eu esperava; ficou vaga uma cadeira entre ambas; ocupei-a logo.

Emília estremeceu; voltou-se toda para falar a outra moça, que lhe ficava à esquerda; senti que sua cadeira se afastava da minha por um movimento imperceptível.

— D. Emília! disse de modo que me atendesse.

Ela olhou-me.

— Desejo fazer-lhe um pedido.

Não me respondeu; mas uma ligeira inflexão do rosto parecia indicar-me que se dispunha a ouvir

— Diga-me, D. Emília, se alguma vez involuntariamente a ofendi, para que lhe suplique meu perdão?... Mas creio antes que tive a infelicidade, e não a culpa, de desagradar-lhe... Se isso é verdade, farei que a minha presença não a importune mais!

Levantei os olhos para ela. Parecia não me ouvir, nem mesmo ter consciência de que eu ali estivesse e lhe falasse. Sua alma passava no olhar, e ia ao outro lado da sala. Havia em sua fisionomia e atitude a expressão pasma que deixa a alheação ou o recolho dos espíritos.

— Não me responde, D. Emília? insisti ainda.

Continuou impassível. Estive algum tempo observando-a: depois voltei-me para D. Leocádia.

— A senhora tem notado alguma alteração na saúde de D. Emília?

— Não, doutor; por quê? perguntou-me assustada.

— As moléstias graves, como a que ela sofreu, costumam afetar alguns órgãos importantes. Por exemplo, algumas vezes deixam uma surdez incômoda...

— Pois ela, não! Ouve até muito bem!

— Ah! há pouco me pareceu o contrário!

Emília ergueu-se:

— Também a mim me parecia que o Sr. Dr. Amaral era míope; mas agora conheço que enxerga muito e longe!

— A senhora ouviu?... Desculpe! Cuidei que estava distraída.

— Enganou-se ainda desta vez! disse-me e afastou-se.

Uma das alusões de Emília, eu tinha compreendido perfeitamente: ela me qualificava de míope por não ter percebido logo quanto eu a importunava. Que sentido porém tinham aquelas outras palavras — enxerga muito e longe?

Devia ter breve a explicação.

Julinha estava ao piano; conversávamos.

A voz dessa menina tinha não sei quê de bom e mavioso, que penetrava o coração de suaves eflúvios. Era quase sempre ela quem me aplacava as cóleras suscitadas pelos motejos da Duartezinha.

Esta passeava na sala pelo braço de um moço de vinte anos, ridículo arremedo de homem, que a moda transformara num elegante boneco. Emília, na sua fria e incisiva ironia, retratava-o com um monossílabo. Ela dizia por exemplo: — Nós somos um perfeito cavalheiro de sala, Sr. Barbosinha. Nós trajamos no rigor da moda. Este nós era o pronome da fatuidade e efeminação do moço.

Passando por diante do piano, Emília soltou uma risada bem alta e dirigiu-se a Julinha:

— Não lhe parece, prima?

— O quê, Mila?

— Eu dizia aqui ao senhor que a gratidão é um sentimento mesquinho.

— Como mesquinho? Não entendo!

Diva (1864)Where stories live. Discover now