TODA QUINTA-FEIRA

Start from the beginning
                                    

Tinha vinte anos quando os amigos o convidaram para ir até um bar onde havia música ao vivo e diziam se apresentar uma excelente cantora. Nesta época Celso ainda não havia descoberto que o improviso era perigoso, e aceitou. Era um bar pequeno, pouca luz. Casais distribuídos pelas mesas com quatro lugares e cadeiras de madeira, um pequeno palco onde somente três músicos muito pequenos caberiam e ainda conseguiriam tocar. Garçons circulavam tranquilamente, e uma atmosfera agradável tomava o lugar encoberto por uma leve névoa esfumaçada no tempo em que se podia fumar em qualquer lugar. Pediram cervejas e conversaram sobre os assuntos do dia. A música também iniciou, primeiro os músicos ensaiaram alguns solos e então ela entrou.

A primeira vez que Celso a viu achou que não suportaria o turbilhão que sentiu em seu peito. Foi como se tudo o que ele ouvira falar sobre o amor de um instante para o outro houvesse se materializado. O amor não era cruel, não era efêmero, não era sofrido. O amor era paciente, bondoso e persistente. O amor era aquela mulher.

Ela usava um longo vestido bordô colado ao corpo com um decote que permitia ver os seios na medida perfeita, deixando que a imaginação completasse o desenho, e a imaginação de Celso completou-o com exatidão. A cintura afunilada e os quadris proporcionais, sandálias tão altas em saltos tão finos que ela mais parecia flutuar do que andar. Levantou-se de uma mesa que ficava do outro lado do bar e desfilou pelo salão até o pequeno palco. Os músicos pareceram diminuir quando sua grandeza se fez presente diante do microfone. Palmas e assovios foram ouvidos, mas Celso não conseguiu mover sequer um músculo, que dirá assoviar ou bater uma palma.

E ela cantou.

Celso entendeu o dilema de Ulisses amarrado ao mastro ouvindo o canto das sereias, ainda que inebriado, sentiu-se insatisfeito. Queria mais, queria estar perto dela, e tal qual Ulisses, tentou se soltar das amarras, mas não conseguiu. A voz era linda, rouca, melodiosa e afinada. Movia-se com sutileza e sensualidade no minúsculo espaço do palco enquanto acompanhava os compassos com a simplicidade de quem conversa, fazendo com que no salão do bar não se ouvisse nada que não fosse o bater ritmado dos instrumentos e aquela voz de divindade preenchendo o espaço vazio. Assim foi por uma hora inteira. Ao final Celso aplaudiu, saindo do transe em que se colocara. Levantou-se juntamente com todos e efusivamente manifestou seu apreço por aquela moça de vestido bordô colado ao corpo, com cintura fina, de seios e quadris fartos, equilibrada sobre o maior salto que ele já vira em uma sandália cheia de brilhos. Estava apaixonado.

Ao final do show pediu ao garçom informações sobre a mulher. O garçom respondeu com a displicência de quem já fora interrogado inúmeras vezes da mesma maneira, mas garantiu que todas as quintas ela fazia shows naquele bar. Deste dia em diante, por cinquenta anos, Celso jamais mudou sua rotina de quinta-feira.

Esta era mais uma. Passou a tarde envolvido em atividades triviais, escrevendo uma nota aqui outra ali, afinando alguma coisa, organizando suas pautas. Quando se aproximou o horário do show, já à noite, preferiu ir de ônibus. Ela sempre ia de carro, ele sabia, mas ele preferia tomar o ônibus. Vestiu seu terno cinza escuro, a camisa branca de um branco inimaginável, abotoou o colarinho e optou por uma gravata azul escura. Tentou o nó duas vezes, mas insistiu em fazer sozinho, até que na terceira ficou perfeito. Conferiu os trocados na carteira e saiu.

O ônibus passava sempre no mesmo horário às quintas-feiras. Às vezes havia um atraso de alguns minutos, e uma única vez por mais de meia hora, o que obrigou Celso a ir de táxi. Mas fora uma única vez. Antigamente o motorista era sempre o mesmo e conhecia Celso, tanto que certo dia chegou até a esperá-lo parado no ponto, pois Celso sofrera um acidente e estava com uma perna engessada, demorou mais do que o normal manquitolando agarrado às muletas. Mas ultimamente os motoristas trocavam como notas numa música, e Celso nunca sabia quem seria seu condutor na próxima quinta.

TODA QUINTA-FEIRAWhere stories live. Discover now