Capítulo 1 - De volta ao Paraíso

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     Eu não achei que eu voltaria à fazenda tão cedo. Não para morar, pelo menos. Os anos que eu vivi na cidade grande me fizeram esquecer como é estar num lugar silencioso, com cheiro de vacas e de vida tranquila.
      Por sorte, minha carteira de habilitação passou de provisória para definitiva antes da formatura. Assim, pude viajar de carro, sozinha e sem infringir nenhuma lei. E o melhor: ouvindo minha playlist de viagem em volume máximo, estreando o som que eu ganhei de presente de formatura, um presente “parte 2” do meu pai, que me deu o carro no meu aniversário de vinte e um anos.
      Vou explicar como vim parar no Paraíso novamente.
      Eu cresci aqui, nessa cidade calma e pequena, chamada Paraíso, com muitas fazendas, uma grande escola, uma igreja tão grande quanto a escola, três mercadinhos e um hospital bem distante. Antes de eu começar o ensino médio, meu irmão caçula morreu atingido por um raio numa tempestade, e, depois do longo luto, meus pais se separaram, e eu me mudei com minha mãe, Laura, para a cidade. Ela queria começar uma nova vida, preferencialmente com mais
oportunidades, já que meu pai nunca quis largar a fazenda. Em Vitória, a seis horas de Paraíso, minha mãe e eu começamos uma vida em meio aos prédios e buzinas. Mesmo na cidade, meu coração não deixou de amar a natureza e a vida bucólica que eu vivia, o que provavelmente me fez sonhar em ser veterinária. Comecei a faculdade ainda nova, graças ao meu QI ligeiramente alto e uma dedicação escolar que minha mãe incentivava com muita rigidez; com vinte anos, eu não estava longe de acabar a faculdade, e estava muito bem engajada com o meu trabalho de conclusão de curso. Foi quando minha mãe adoeceu, e o câncer consumiu cada centímetro do corpo dela de forma abrupta e totalmente invasiva. Ela faleceu há um mês. Digamos que, na minha colação de grau, não tinha ninguém gritando meu nome. Não havia sobrado ninguém.
      Enquanto minha turma mergulhava no bucolismo irlandês, planejado com muito afinco desde o início da faculdade, eu decidi voltar ao Paraíso e passar um tempo com meu pai, o velho Heitor.

                                 ...

- Achei que chegaria mais tarde! Ainda não terminei o almoço – meu pai falou, com um leve sorriso, limpando as mãos no pano de prato que estava no bolso do conhecido avental florido. Esse avental tem história... – Você não correu muito, né? Não faça eu me arrepender pelo presente que te dei, Melissa.
- Não corri, pai – falei rindo, ao perceber que, exceto pelo olhar cansado, meu pai continuava o mesmo. Segui-o até a cozinha, que também não havia mudado nada – Só sai mais cedo.
- Nesse caso, fico mais tranquilo – falou, virando-se para a frigideira no fogo. Reconheci o cheiro antes de espiar o fogão. Era ensopado de fígado, minha comida preferida desde pequena.
      Resolvi puxar a cadeira e me sentar, observando meu pai cozinhar. Eu não o via desde o funeral da mamãe. Ele nunca superou o divórcio, e imagino que esse olhar cansado apareceu no ultimo mês.
- Como tem passado? Você não foi na minha formatura – comentei, em tom baixo, com cautela. Ele respondeu depois de um longo silêncio.
- Você sabe... A gente vai aprendendo a viver. Alguns dias são mais difíceis que outros. Sei que o presente que mandei não compensou minha ausência, mas quero que saiba que estou muito orgulhoso de você, Mel – ele se virou para me olhar – Com certeza não vai faltar pacientes para você por aqui – rimos. Ele desligou o fogo e se sentou comigo – O que pretende fazer? Quanto ao seu futuro.
- Ainda não sei – respondi, pensativa. Eu tinha alguns planos, mas depois que perdi minha mãe, fiquei meio sem rumo – Vim para cá na esperança de decidir o que fazer.
- Achei que era por saudade do seu velho – ele riu, bagunçando meu cabelo, que estava mais curto do que na ultima vez que ele me viu. Agora, estava muito acima dos ombros.
- Claro que estou com saudades – sorri – mas preciso encontrar um caminho para seguir. Não consigo considerar aquele apartamento minúsculo em Vitória como minha casa, principalmente sem ela lá – ao falar isso, percebi que meu pai ficou mais triste, então mudei de assunto – Mas talvez eu abra uma clinica um dia, quem sabe. Por agora, quero ganhar experiência. Aqui parece um bom lugar para isso. A Molly está bem?
- Ela está sim – Molly, uma vaquinha especial – A família dela só cresce. Já é avó. Vai lá no seu quarto guardar as coisas. Dei uma ajeitadinha. Sei que você não tem doze anos mais, então fique à vontade para deixa-lo mais parecido com a Mel adulta, veterinária e motorista. Depois que almoçar, te levo para ver a Molly e a turminha da fazenda feliz.
      Subi para o quarto. Tudo continuava igual. O mural de fotos ainda estava ali, retratando vários momentos da minha vida. Parei um tempo olhando a foto em que estava meus pais, meu irmão Mike e eu abraçados com a Molly, ainda filhote. Enxuguei as lágrimas e consegui abrir um sorriso ao ver uma foto bem antiga: Simas, Elisa, Nina e eu, na inauguração da escola de equitação do pai do Simas, o Lúcio. Reparei que Nina ainda usava chupeta, e eu, aparelho ortodôntico. Eu estava entre Simas e Elisa, e Simas me abraçava com muita segurança, tanto quanto era possível a um garoto de oito anos. Eu sentia falta dele. Pelo que eu via no Instagram, ele estava muito bonito.
      Depois de arrumar tudo, desci e almocei com meu pai. Ele me contou que Elisa largou a faculdade e decidiu morar com o namorado, mas assim que ela soube da traição, voltou para Paraíso. Nina estava fazendo Direito – isso eu já sabia, ela estudava na mesma faculdade que eu; pelos meus cálculos, estava no segundo período. Sempre come com os riquinhos da sala na lanchonete mais cara do campus. Nunca mais conversamos.
- E Simas? – perguntei, enquanto lavava os pratos. Fingi interesse maior na torta de morango que meu pai estava tirando da geladeira.
- Ele está bem. Ele se dedica muito aos cavalos. Aliás, acho que você devia ir lá, ele vai precisar de sua ajuda. O Rick, aquele cavalo preto, pegou alguma infecção essa semana e está piorando.
      Comi a torta em silêncio.

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