De: Apolo / Para: Orfeu

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De tal forma que eu também acabo me tornando um secretário e, a minha casa, uma central de reclamações de cartas devolvidas. As pessoas ficam realmente furiosas quando suas cartas não chegam ao destino almejado. Ou quando não são correspondidas porque o destino não quis que assim fosse (e isso está além do domínio de qualquer deidade). Algumas me enviaram maldições que me adoeciam por semanas, e lá vinha Eros com seu cavalo marrom-terra me buscar e me levar aos confins da floresta oeste para que a Senhora Panaceia pudesse me besuntar com seus óleos e me fazer tomar os seus xaropes amargos e horríveis. Banhar-me com as suas ervas fedorentas, os seus chás que me causavam eternos vômitos, expurgando de mim qualquer sinal de doença e morte. Uma dessas maldições quase me tirou a visão, e achei que teria o mesmo destino do velho Perseu. Em outra ocasião, tive pesadelos horrendos em que uma horda de harpias me sequestrava e me puxava os braços e as pernas até eu rasgar por inteiro e morrer ali mesmo, devorado por elas. Não preciso dizer o quanto que essa maldição me deixou apavorado com a ideia de dormir por meses. Mas os anos passam como passam as dores e como terminam as guerras. Como os traumas, no decorrer do tempo, tornam-se parte tão autônoma de nossas vidas, não é verdade? Eles não machucam mais, não como uma vez já machucaram tão impetuosamente, apenas existem e passeiam por ali, como crianças rebeldes que ainda não querem entrar em casa para tomar banho e jantar. E se você ousa abordá-las, elas gritam com você, e voltam correndo para a completa escuridão sem olhar para trás.

A sua carta de reclamação, no entanto, não veio com nada que me machucasse ou que pusesse a minha vida em risco. Você foi sucinto em dizer que erraram o endereço, e que não havia problemas, contanto que isso não se repetisse uma próxima vez. Após passar por poucas e boas com as fúrias alheias, achei aquilo tão dócil e sincero que decidi eu mesmo te escrever uma carta lhe pedindo desculpas que você nem mesmo pediu. Pensei várias vezes em não mandar, passei quase duas semanas matutando sobre aquilo. Se eu seria invasivo, um intruso, uma inconveniência que tiraria a sua paciência e se aproveitaria da sua boa-vontade. Mas por falta de gestos como aquele na minha vida, senti a necessidade de te enviar. Alimentei os cisnes, lhes contei sobre os lugares que eles deveriam passar, os riscos que eles poderiam correr, as montanhas nebulosas que eles deveriam evitar, e esperei.

Não demorou nem mesmo uma semana para a sua resposta chegar. E você não sabe disso, mas foi algo que, naquela semana específica e dolorosa, me encheu de alegria. Contei a notícia para o velho Perseu, para Eros e para Afrodite. Esta que, ocupada na cozinha com suas senhoras, apenas me olhou de esguelha e perguntou:

– Então você está procurando pelo amor também?

– Não sei, acho que sim – eu respondi.

– Precisa de ajuda?

– Não senhora, muito obrigado, mas posso fazer isso sozinho – respondi cautelosamente, com medo da minha petulância em negar a ajuda de um deus. Afrodite, contudo, somente voltou a cortar as cebolas e disse, espremendo os olhos lacrimejados pela ardência:

– Se você diz...

Você ainda se lembra, Orfeu, de como as cartas que começamos a escrever um para o outro eram tão longas e esparramadas em declarações e elogios? Foi como se, por todo aquele tempo em que eu não te conhecia, eu estava apenas esperando o momento em que fosse te conhecer, porque eu já te conhecia no fim das contas? Uma familiaridade tão rápida e espontânea, algo que beirava ao divino. Ainda beira, é claro. E acredito que será sempre assim. Não posso dizer com absoluta certeza, obviamente, e mesmo assim eu prefiro sentir isso, tudo isso, desta maneira.

Tu me disseste uma vez sobre a impermanência, sobre as incertezas, e eu te respondi com um poema que era sobre a permanência e a certeza de forma incerta. Nós gostávamos disso, dos desafios da linguagem, da sacralidade dos versos. Gostávamos como ainda gostamos. E como é difícil sair de uma mentalidade poética que tenta ver beleza em tudo, que traz dignidade à dor, que traz respeito às coisas mais obtusas ou incertas, profundas ou tangenciais. Até aquelas mais indescritíveis, a poesia encontra uma maneira de lhes dar vida e forma. E através de nossas cartas, foi isso o que fizemos, trouxemos vida e forma a algo tão distante e oblíquo.

De: Apolo / Para: OrfeuWhere stories live. Discover now