Um amor, dois verões: corações partidos

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"Fadas ou unicórnios?" Questiona-me com um sorriso travesso.

Era um dia ensolarado de verão quando a conheci. Dona de longos cabelos que escorriam por sua espalda como um véu negro. Seus olhos afiados me encaravam com curiosidade, e sua boca carnuda desenhava o sorriso mais bonito que já havia visto. Mas o que mais me encantava nela era a personalidade forte, a forma como sabia brincar com as palavras e sua busca incessante pelo novo.

"Minha cor preferida é o arco-íris, e a tua?" Ela era cheia de perguntas, algumas sem pé nem cabeça, outras que me vaziam revirar a alma em busca de respostas.

Os dias passaram, entretanto, e a visão que tinha dela foi se desgastando como a tinta num papel velho. Como as gotas de chuva, lágrimas e café que caem no nosso livro preferido: eu já a conhecia de cor e salteado, mas havia se tornado impossível ler suas entrelinhas. Seu nome ecoava em minha cabeça, não mais como a mais gostosa melodia de piano... Soava dentro de mim como um violinista que não sabe tocar uma nota sequer.

"Eu vou fechar a porta, tu vais entrar ou não?" Ela me olha nos olhos, as orbes não mais afiadas. Está cansada, e eu também. Aceno uma desculpa silenciosa, mas vejo de relance, enquanto bate a porta na minha cara, que ela a não aceita.

As noites estão cada vez mais frias. O lado esquerdo da cama costumava ser ocupado por seu corpo, mas a distância entre nossas almas era dolorosa demais para seguir em frente e, ainda assim, nos negávamos a admitir a verdade dura de que não havia mais saída. No fundo, me apegava ao que ela costumava ser, ao que nós costumávamos ser e querer. E ela fazia o mesmo. Era uma guerra perdida antes mesmo de começar.

"Eu amo você." Dizíamos uma à outra, mas sabíamos que só amar já não bastava.

Nós nos arrastamos pelas vielas de nossas almas, unidas por um labirinto de memórias boas e tantas outras torturas, até não podermos mais. Fizemos de tudo para que nossas peças de quebra cabeças voltassem a se encaixar. Buscávamos entre olhares e toques gentis o molde perfeito que faria as engrenagens funcionarem. Mas erámos como uma metástase. Nossa bagunça havia se espalhado por todos os lados e não havia mais nada que pudéssemos fazer.

"Nós precisamos conversar." Era verão, mas chovia lá fora, quando sentei à sua frente com as mãos cruzadas e os dedos inquietos. Com o coração palpitando na boca do estômago e os olhos ardendo pelas lágrimas que eu recusava deixar cair, encarei seus belos olhos e seu sorriso triste.

"Eu amo você." Ela não parecia se preocupar em refrear as lágrimas ou se incomodar com as mechas escuras que caíam em sua face, agora tão mais curtas do que quando a conheci.

"Quando te vi pela primeira vez, dançado ao lado do teu amigo com os olhos fechados e os cabelos ao vento, algo dentro de mim se acordou e eu sabia que tinha que te conhecer melhor." As palavras deixavam meus lábios e pairavam entre nós com o sabor agridoce de uma lembrança distante.

"Tu ficou parada na minha frente uns bons minutos e, no meio de um movimento e outro, eu senti teu olhar afagar a minha carne." O sorriso em seus lábios recordava sentimentos que já não existiam.

"Eu era uma louca tímida demais, mas tu me olhou nos olhos e eu senti toda a força que emanava da tua alma através deles." Uma lágrima escorreu pela minha face, e ela riu, lembrando-se do que veio em seguida.

"Foi difícil entender as primeiras palavras que tu me disse, tuas bochechas se tornaram rubras e meu peito se aqueceu com a tua inocência."

"Apesar do início desajeitado, tu deu um jeito de fazer a conversa fluir. Em poucos minutos, tu me teve desnuda de toda timidez. Tu sempre foi boa em me despir dos meus medos."

"E estás com medo agora, não é?" Ela levantou da poltrona e se acomodou ao meu lado no pequeno sofá de dois lugares do meu apartamento. A proximidade de nossos corpos tanto me confortava quanto fazia palpitar meu peito cansado.

"Tão aterrorizada quanto no dia que te pedi em namoro." Admiti, segurando firme sua mão na minha. Os anéis de compromisso em nossos dedos pareciam envelhecidos, quando um dia costumou brilhar como as estrelas.

"Foi bem aqui, nessa mesma sala. Mas era noite e o ambiente a luz de vela mostrava apenas o necessário. De toda forma, a única coisa que eu precisava ver era teu sorriso." Ela acariciou minha face, limpando outra lágrima ousada.

"Tu estava com um vestido laranja e as mesmas botas de sempre. E teu sorriso era tão vibrante como a cor da tua roupa. E eu estava uma bagunça, as calças sujas do chocolate que havia usado para preparar o fondue, a minha velha blusa do Pink Floyd e os cabelos saltando do coque mal feito. Sempre fomos tão opostas. Eu era uma bagunça ambulante, e tu vivia a vida com tudo no lugar. Meu maior medo era que minha bagunça não coubesse na tua vida." Ela encostou minha cabeça em seu ombro, o cheiro do seu perfume adocicado costumava acalmar meu coração, mas agora eu só queria sangrar até me desfazer de tudo que fosse dela.

"Por um tempo, a tua bagunça coube perfeitamente em mim. Mas a verdade é que eu sempre tive a minha própria dose de coisas fora do lugar. Tu nunca foi a única com mais bagagem do que duas mãos podem carregar." Ela se levantou e eu me encolhi ainda mais no sofá.

"Eu amo você." Disse o que lutei a noite inteira para não dizer.

"Eu sei, meu bem." Ela se agachou sorrindo suavemente e, num gesto que pareceu durar uma vida inteira, encostou seus lábios nos meus pela última vez. "Eu amo você, mas apenas amar não basta."

E, como se eu não estivesse sangrando encolhida no sofá da sala, ela saiu porta afora para nunca mais voltar.

Contos e gotas das chuvas de verãoWhere stories live. Discover now