Sintomas

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Assistíamos ao canal de documentários sentados no sofá: ela, Aurora e eu. Passava um programa especial interessantíssimo sobre alienígenas e teorias de conspiração.

Ela, quase tão cética, não conseguia crer em nada daquilo e eu tentava entender como aqueles caras conseguiam chegar àquelas bizarras conclusões.

Aurora só queria receber carinho, isso já bastava, e recebia. Mesmo arisca e medrosa com todos, desde sempre, não tinha nenhum receio de ficar no sofá conosco. Aqueles grandes olhos amarelos nos observavam atentamente e eu os encarava, sorridente.

Era Domingo, a noite já caía e eu ainda não tinha fumado nenhum cigarro. Não sentia a necessidade de, mas pensei que talvez fosse interessante acender um. Controlei-me: tudo estava tão bom, não gostaria de estragar o momento.

Sei bem que ela não me impediria, mas sei também que não gostava do cheiro, e tudo bem. Sacrifícios hão de ser feitos e esse nem era um tão grande assim.

Tinha ficado quase duas semanas fora e, agora que estava de volta, resolvera passar o fim de semana comigo. Sua família morava em outra cidade e ela geralmente passava os Sábados e Domingos sozinha em casa.

Aceitei a companhia de bom grado: ela era engraçada, cativante, inteligente. Qualquer assunto era interessante, até mesmo o cultivo de feijão orgânico por comunidades isoladas na África subsaariana.

Estava deitada em meu peito, com seus dedos indo lá e cá nas cicatrizes do meu punho. Fazia um pouco de cócegas, isso quando eu sentia alguma coisa. A gatinha, em seu colo, miava de quando em quando se achasse que eu estava recebendo mais atenção do que ela. Os minutos desenrolaram-se em horas e a Lua não tardou a brilhar no céu. Dormiu, tranquila, e eu só conseguia admirar seus traços.

Serena, respiração compassada, boca entreaberta em um meio sorriso. Aqueles lábios carnudos, tão lindos, aqueles cachos tão vivos: pareciam fios de telefone, para quem já tenha visto um telefone de verdade na vida.

Sorri, ela também: talvez sonhasse...

Fiquei ali por não sei quanto tempo. Abriu os olhos de repente e me assustou. Sorriu de novo e, com as pálpebras pesadas, me puxou para a cama. Deitamo-nos, ela voltou ao meu peito e eu a abracei toda. Quis que chovesse para ficar perfeito, mas não choveria... hoje não.

O quarto, diferentemente da sala, estava bem escuro: Aurora deitou-se aos pés da cama... o que mais eu poderia querer? Só uma chuvinha mesmo.

Demorei um pouco para dormir, pensando em mil e uma histórias até que o sono finalmente veio e me levou: sonhos cheios de cores e formas abstratas impossíveis preencheram o vazio da minha mente, lembro-me bem, e acordei na manhã seguinte meio perdido no mundo.

Eram cinco horas e parecia que ela tinha congelado na mesma posição. Não quis acordá-la, tentei tirar o braço debaixo dela o mais cuidadosamente possível: deu certo.

Passei um café, fumei um cigarro, saí para correr. Voltei e lá estava ela, do mesmo jeito. Observei-a um segundo mais antes de ir ao banheiro, tomar um banho e voltar para a cama.

Ela estava de folga, eu não. Ou talvez se... não, não. Coloquei o celular para despertar trinta minutos mais tarde, mas perdi a hora, providencialmente.

Eram dez e meia quando acordei. Ainda dava tempo de chegar ao escritório antes do meio dia, mas teria de me apressar e não me senti nem um pouco inclinado a isso. Não havia nada de tão urgente que me obrigasse a levantar.

Liguei para a secretária e pedi que verificasse minha agenda para o dia: nenhum compromisso importante.

Disse-lhe que estava indisposto e tiraria o dia de folga.

Não menti, não estava mesmo me sentindo muito bem: sentia algo que não deveria, mas que era inevitável.

E, como se não bastasse, estava gostando muito. 



Revisão publicada em 09/10/2020.

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