1. A Bota de Cemitério

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Mas o chulé...

Melhor descalçá-las durante a noite.

Amanhã federão menos.

DUAS DA MADRUGADA.

Uma fumacinha começou a sair das botas.

Era o mau cheiro ganhando forma e cor e volume diante da Lua cheia.

Gaspar roncava feito um leão.

E a fumacinha virou fumaça.

Aumentando e aumentando e aumentando...

Dissipando-se junto com o tempo.

Em meia hora, já estava sobre todo o cemitério.

Neblina fedorenta.

Fedor insuportável de morte.

Alastrando-o rapidamente.

Mais e mais e mais...

Prédios.

Casas.

Mansões.

Quarteirões.

QUATRO DA MANHÃ.

O mau cheiro das botas finalmente entrou na residência do prefeito Bonitinho.

Entrou nas narinas do filho.

Entrou nas narinas da filha.

Entrou nas narinas da empregada 1.

Entrou nas narinas da empregada 2.

Entrou nas narinas do motorista.

Entrou nas narinas do cachorro Sebastian, que morreu na hora.

O dia 13 de dezembro não seria igual aos passados.

De manhã, as pessoas saíram de casa menos apressadas.

Menos antipáticas.

Menos insensíveis.

Menos perfumadas.

O prefeito Bonitinho apareceu na TV.

Para o espanto de todos, apenas leu um soneto de Augusto dos Anjos:

A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro

Esquartejado, a maldição de Pio

Décimo caia em teu algoz sombrio

E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio

Que te vender as carnes por dinheiro,

Pois, tua lã aquece o mundo inteiro

E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu teu pescoço

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos – fontes de perdão – perdoaram!

Oh! Tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia de Juízo,

Talvez perdoasses o que te mataram!

NINGUÉM ENTENDEU NADA.

Gaspar acordou às 9.

O par de botas já não estava mais ali.

Na padaria, um copo de café com leite, dois pãezinhos, um chineque e um pedaço de bolo.

"O senhor não teria por acaso um calçado velho pra ?! "

Dentro do cemitério, o par de botas de Gaspar jazia agora sobre o imponente túmulo do Capitão Ernesto Gutemberg da Fonseca Cardoso.

Uma velha história mal contada diz que ele matou a esposa com dezenas de "coturnadas" na cabeça.

DUAS BOTAS ASSASSINAS E FEDORENTA JAZIAM SOBRE O MÁRMORE DE CARRARA.

Um mendigo sem nome apareceu de repente.

Mendigos sem nome apareceu de repente.

Mendigos sem nome sempre aparecem de repente.

Alguns gostam de andar entre as lápides do cemitério.

Quase sempre o guarda municipal antipático e grosseiro aparece para incomodá-los.

A POLÍCIA MUNICIPAL FOI FEITA PRINCIPALMENTE PARA ESPANTAR OS POBRES COITADOS.

Sugestão à prefeitura: um curso urgente de boas maneiras e de boa educação a todos os seus funcionários fardados.

O mendigo sem nome fez o sinal da cruz e pegou as botas do Capitão.

O mau cheiro não o incomodava.

Afinal, ele era também o mau cheiro na forma de criatura humana.

Roupas sujas.

Barba suja.

Corpo sujo.

Bunda suja.

Calça mijada.

O mendigo sem nome sentou no chão e calçou as botas.

Mas as botas não eram confortáveis para ele.

As botas não queriam ser dele.

E então foram apertando, apertando, apertando...

Apertando tanto seus pés até a carne começar a sangrar.

Apertando tanto até o sangue começar a escorrer.

O mendigo sem nome gritou.

Gritou desesperadamente...

Inexplicavelmente, nem o guarda municipal antipático e grosseiro ouviu...

Nem os mortos o escutaram.

Depois de dez minutos de agonia, o mendigo sem nome morreu sobre uma poça de seu próprio sangue.

O Sol brilhava indiferente.

E o par de botas sangrentas caídas se desapertou daqueles pés...

Misteriosamente como veio, foi...

Desaparecendo dali para aparecer em outro lugar.

13 Contos de Medos e ArrepiosWhere stories live. Discover now