Sorriso Taciturno

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    Duas flechas zuniram por sobre minha cabeça, Clarisse massacrava um garoto de Apolo na esgrima e um cão infernal abanava o rabo e derrubava os vasos de flores das filhas de Deméter, quebrando-se no calçamento e dando trabalho para as garotas. Resumindo, apenas um dia ordinário no acampamento meio-sangue.

    Entretanto nem tudo estava igual. Após derrotarmos Luke — ou melhor, Cronos o Titã do tempo — no Monte Olimpo verão passado, o acampamento mudou e muito. Claro, para melhor! Agora cada deus, maior ou menor, tinha um chalé para seus filhos. Até mesmo Hades tinha um chalé, um que dava arrepios por sinal. Porém o único morador daquele chalé era Nico: um garoto difícil de se ler, e ainda mais difícil de sorrir, o que estranhamente me incomoda.

    Falando no diabo — ou no filho dele —, assim que saí de meu chalé pude vê-lo. Nico estava sentado na base da escada de um único degrau, assim como todo o chalé, adornada em obsidiana e pura escuridão. Era comum vê-lo daquele jeito, para baixo e com a cabeça nas nuvens, normalmente o garoto ignorava tudo que acontecia ao seu redor e não parecia se importar; mas desta vez... desta vez havia algo de errado. Podia ver em seus olhos que estava pensando em algo sério. Provavelmente em sua irmã.

    Me aproximei devagar. Não que duvidasse da capacidade bizarra de o garoto notar uma mosca se aproximando, mas resolvi não tomar o risco e assustá-lo. Parei de pé ao seu lado. Ele apoiou o rosto em uma das mãos e começou a brincar com as botas escuras. Veja bem, tudo têm de ser preto quando se trata de Nico.

    — Ei — apresentei-me. — Ansioso pelo primeiro verão oficialmente no acampamento?

    Notei-o lançando-me um olhar de relance, e novamente escondendo a face entre os joelhos. Nunca tivemos tempo de realmente nos conhecer, ou ver um ao outro. A vida de um meio-sangue é complicada e sinônimo de loucura desde seu nascimento. Nico tinha olhos escuros que pareciam furtar sua alma, mas recentemente é comum que eu me pegue perdido neles.

    — Não é pra tanto — disse, pigarreando. — Mas até que é um bom lugar, tirando os monstros.

    — Qual é — disse. Sentei-me ao seu lado e entrelacei um braço por sobre seus ombros. Pensei no ano que se passou, por tudo que vivemos juntos, e senti pena pelo garoto ao meu lado. — Você vai se dar bem.

    — Se você diz.

    — Logo, logo, você fará amizades. Participará de missões épicas, e principalmente, se divertirá à beça!

    Ele deu de ombros e lançou um sorriso afetado.

    — Quem sabe... — continuei —, você até consiga uma namorada?

    Essa última parte pareceu pegá-lo de surpresa. Senti-o dar um pequeno arranco e ao analisa-lo percebi que estava vermelho como um pimentão.

    Um segundo de silêncio, e este foi o suficiente para que até mesmo eu me constrangesse. Pude sentir minhas orelhas queimarem aos poucos. Mas ao contrário do que eu esperava, o garoto tímido foi aquele que quebrou o gelo.

    —Eu... — disse ele. Parecia preocupado e oscilava entre me olhar e fitar o chão, envergonhado. — Eu gosto de garotos, Percy...

    Era óbvio que aquele era um tópico sério para Nico. Que ele não tinha o costume de se assumir, ou mesmo tempo pra perder com bobagens assim já que normalmente temos monstros em nosso encalço exigindo nossa atenção. Entretanto disse algo muito inteligente, do tipo "Oh!... Sei... certo". Logo notei que ainda o envolvia com o braço, mas era tarde demais. Se antes minhas orelhas queimavam, agora todo meu corpo crepitava a cor rubra.

    Não tive muito no que pensar, mas de todas as reações esperaria um chute ou um soco. Mas ele me surpreendeu:

    — Você é um bom amigo, Percy.

    Seus olhos fitavam o infinito, e debaixo de todas as camadas de vermelho me peguei observando pequenos detalhes. Sua sobrancelha desvencilhada, o pescoço desnudo, o modo como a luz refletia em seus olhos e, até mesmo, o jeito engraçado com o qual ele apertava as mãos nos joelhos, envergonhado.

    E em um instinto intrigante — uma gargalhada. Não tenho certeza do porquê, ou de onde ela veio, mas logo se transformou em um riso histérico. Nico me olhara confuso, franzindo o cenho, mas logo sua face oscilou de conflito à diversão, e ambos gargalhávamos sem motivo aparente.

    Nos momentos seguintes nos encontrávamos caídos à soleira negra, contemplando as estrelas e o nada ao mesmo tempo.

    — Eu realmente penso assim — disse ele.

    — Assim... como? — indaguei.

    Apoiei-me sobre o cotovelo, de modo que o olhava diretamente, e ele copiou meu movimento. Nos olhávamos face a face, e percebi nesse pequeno instante que situações como essas, onde realmente entendia Nico, eram simplesmente mágicas; e que jamais abriria mão disso.

    Perdi-me em seus olhos.

    — Que... você é uma ótima pessoa — explanou. — E que eu realmente gosto de você.

    Podia ouvir meu coração batendo forte, pedindo-me para me entregar a impulsos remotos, os quais eu não compreendia muito bem.

    — Eu... — respondi-o, ofegante. — Eu também gosto de você, Nico.

    Minha mente me relembrava a todo instante que o garoto não se referia a esse tipo de gostar. Todavia, meu coração queria tanto que aquilo fosse real, que não pude pensar direito.

    Beijei-o.

    E gostei.

    Em primeira instância o garoto parecia perplexo, porém logo se entregou e... simplesmente aconteceu. Não me lembro em quê estava pensando, ou se estava realmente pensando em alguma coisa como um todo, mas sabia que não era errado. Naquele momento não estava saindo com ninguém e, por cima de tudo, nunca havia sentido algo tão... puro.

    — Percy... — Fingiu surpresa — Você gosta mesmo de mim!

    Arranquei-lhe um sorriso, e para mim, aquele simples gesto significou tudo.

Sorriso Taciturno [PerNico] [Yaoi] [PJO]Where stories live. Discover now