Nos Moldes

51 8 3
                                    

17 de junho de 2034


"É uma vida perfeita que temos".

Eles não param de nos falar isso.

"Aqui na Delta somos perfeitos. Vivemos em um sistema perfeito. Quanto mais perfeitos, mais felizes".

Não sei ao certo há quanto tempo tenho escutado este mesmo discurso. 

Estou quase nos meus 18 anos, hora de enfrentar uma maratona de provas para ver o quão digno sou de permanecer aqui e manter a minha vaga aqui na Delta. Gostaria simplesmente de ir para o outro lado dos muros altos, protegidos por todos aqueles guardas que portam armas na parte de trás de seus uniformes para evitar que vejamos seus armamentos. Mas tem algo que me mantém aqui dentro: Sunny. Não posso simplesmente abandonar minha irmã, independente do quão perfeito eles acreditem que isso seja.

Prisão. É assim que chamo este lugar desde que acordei.

Todos realmente acreditam estar vivendo em um mundo perfeito, mas eu sei que algo está errado. Não podemos ser perfeitos. Devo admitir que nunca vi ninguém sofrer, ninguém estar com fome, ninguém chorar, nem nada deste tipo.

Este não é o mundo no qual vivia antes, mas eles não podem saber que recuperei meu raciocínio e saí do que quer que fosse. Transe? Lavagem cerebral?

Lembro quando recuperei parte da minha memória. Foi há 4 meses atrás, quando vi Anny, uma jovem garota, que aparentava ter cerca de três anos, de curtos cabelos negros usando um trabalhado vestido azul bebê, com rendas que se estendiam em todo os seus braços. Sua pele branca radiava sob a luz do sol enquanto era carregada por um dos soldados, que trazia a nova integrante. Em seu colo, percebi um pequeno objeto marrom, com pelos brilhantes que chamavam ainda mais atenção com os raios solares que batiam nele. Um outro soldado chegou ao lado deste que segurava a garota, tirou um pequeno aparelho de seu bolso esquerdo e escaneou os olhos da menina. Após o que pareceu um sinal afirmativo para o primeiro soldado, ele tirou dos braços de Anny o que pude notar ser um pequeno urso de pelúcia. Foi neste exato momento, sentado embaixo de uma das árvores do campo que se estendia pelo enorme pátio, enquanto desenhava a única coisa que tinha em minha mente - perfeição -, que senti uma sensação profunda de pressão em minha cabeça e apaguei, sem saber como acordara em minha cama.

Foi aquele urso de pelúcia que me lembrou que já tive pais e que eles não estavam ali comigo. O único resquício de família que me sobrou foi minha irmã Sunny.

Me chamo Antonny, farei 18 anos daqui a menos de uma semana e não sei como será esta maratona de provas do qual sempre nos falaram enquanto estivemos aqui.

"Estudem bastante e nunca se esqueçam do que aprenderam. Uma hora enfrentarão a Maratona Delta. Ali, mostrarão se conseguem viver como verdadeiros perfeitos".

Maratona Delta. É assim que eles chamam a tal avaliação.

Não sei ao certo o que esperar, nem muito menos qual meu interesse em como vou me sair. Sunny. Não posso me esquecer de Sunny.

Só posso me encontrar com ela depois das 11h, após as aulas, e antes das 22h, antes de sermos direcionados aos nossos dormitórios. Como moramos em mansões diferentes, ficamos limitados em nosso contato. Sunny tem apenas quatro anos. Foi por meio dela que descobri o nome da pequena nova integrante que chegou à Delta. No dia seguinte da chegada de Anny, Sunny chegou animada após as aulas para me contar sobre a nova estranha com quem compartilha o dormitório.

- Ton, chegou uma nova amiga em meu dormitório - informou com toda a empolgação que poderia transcender de dentro de si.

- Que legal, Sun. Já sabe como ela se chama? - perguntei, feliz pelo êxtase que demonstrava.

- Não tenho certeza. Cheguei ontem ao quarto para dormir e ela estava naquela cama do lado da janela dormindo. Fazia tempo que não via aquela cama ocupada... - A cama antigamente era ocupada por uma garota chamada Cindy, que fez seis anos e foi para a Casa 2A, enquanto Sun ainda estava na Casa 1A, um pouco distante da casa 6O, onde estava morando.

- E não conseguiu falar com ela esta manhã?

- Infelizmente não. Fui para a aula e acabei até esquecendo da chegada dela - contou sorrindo e colocando a mão na testa - Mas mais tarde, sem falta, vou falar com ela. Achei tão bonito o cabelo dela... - parou pensativa alisando seu cabelo.

Sunny tinha um jeito encantador até mesmo de olhar, talvez por conta de seus olhos cor de aveia. Era raro não notá-los, já que sempre andava com seus cabelos castanhos soltos, com parte da frente de suas mechas de cada lado unidos como um mini rabo de cavalo.

- Deixe ela se sentir à vontade. Assim como nós, ela é perfeita.

Nem acredito que eu mesmo usava tal discurso. Isso me enoja. Infelizmente, sei que contar com o apoio de Sun para tentar entender o que está acontecendo não é a melhor coisa. Ela é somente uma criança que realmente acredita no nosso perfeito mundo, ou, o que chamo de perfeita prisão.

Mas em dois dias, acredito que vou conseguir entender melhor o que está havendo. Está chegando o dia de fazerem o famoso discurso preparatório do fim do semestre que antecede a próxima bateria de alunos para a Maratona Delta, que acontecerá daqui a um mês. Enquanto todos estiverem atentos, sentados, engomados, "perfeitos", assistindo ao pronunciamento da governanta Aura Skane, que rege todo este lugar, irei entrar no sistema e ver o que estamos fazendo aqui.

Não sou perfeito. Sou Antonny Hoffer. 

Lentes InterruptasWhere stories live. Discover now