Capítulo 15

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Ele desviou o olhar da obra momentaneamente para encarar Benedict Bridgerton. Quando viu que sua expressão era séria e carregada de franqueza, voltou novamente sua atenção para a tela, mas agora de um jeito diferente.  Não era somente a beleza e expressividade daquele pássaro que o cativara. Ethan foi atraído pelos sentimentos que o quadro exprimia silenciosamente, com mais eficácia que um livro repleto de palavras.

– Aprisionado em seu exterior. Livre por dentro... – Ele repetiu, um sussurro quase inaudível que revelava o quanto aquela frase o perturbara.

– Não foram essas as palavras precisas que minha sobrinha usou. – Ressaltou Benedict. – Pensando mais profundamente sobre aquele dia, não me recordo de ela sequer ter dito algo sobre a tela. Apenas entregou-me o quadro e disse que era um presente para mim. |E é exatamente isto o que eu mais me impressiona. A arte dispensa explicação, pois uma mesma imagem como esta será seguramente compreendida  sobre pontos de vistas completamente distintos. De modo que não há nenhuma conclusão equivocada, como você entende é como de fato deveria ser entendido.   – O homem se aproximou do quadro e o tocou levemente. – Quando olho para este grande pássaro, a única figura enxergada pelo mundo exterior, e em seguida olho para o pequeno pássaro vivaz que reside em seu coração, interpreto desta forma: um pássaro que com as asas inúteis vive aprisionado, contudo, por dentro ainda conserva uma força, um inconformismo benéfico, que o impede de acomodar-se.  – Benedict girou a cabeça e o fitou. – Estou curioso para ouvir seu ponto de vista, Ethan.

Ele balançou a cabeça.

– Eu não tenho uma alma artística, senhor. Não saberia me expressar com tanta eloquência e precisão. E eu cultivo a opinião de que é melhor manter-me calado em ocasiões em que corro um grande risco de proferir bobagens.

O Sr. Bridgerton lançou um olhar sarcástico em sua direção.

– Lamento informá-lo, mas agora mesmo você acaba de dizer uma grandíssima bobagem. – retorquiu, curvando um pouco os lábios em um sorriso. – Como expliquei antes, não há interpretação incorreta quando se trata da arte. Vamos, me diga a primeira coisa que lhe vem à mente ao ver o pássaro grande.

Resignado, Ethan pensou por um segundo e então respondeu:

– A ave está destinada a ser subestimada. – a frase fluiu naturalmente de seu interior.

– Interessante. – elogiou Benedict.  – Então você ainda considera a ave de alguma serventia mesmo com as asas disformes?

– Em absoluto. – ponderou, com ar pensativo. – Em meu julgamento, acabo por subestimar este pássaro, condenando-o de acordo com os meus olhos veem e não com sua real força.

– Excelente observação. – o Sr. Bridgerton disse, empolgado.  – E quanto ao pássaro menor? O que pensa dele?

Ethan estreitou os olhos.

– Eu temo por ele. – confidenciou, surpreendendo a si mesmo com essa declaração.

– Perdão?

– Pergunto-me se com o tempo ele também não perderá suas asas.

– Você também subestima o pássaro pequeno. – observou Benedict com um tom neutro. – Esta é mesmo uma imagem instigante, não concorda?

Ethan preferiu não responder.

– Sinto-me como se tivesse sido enviado novamente a Eton. – devolveu ele, forçando um sorriso. – Espero me sair bem nesta disciplina, Sr. Bridgerton. Foi-me garantido que não há respostas erradas.

Benedict riu.

– Você foi exemplar, Denbrook.  O primeiro da turma! – O homem declarou, pousando a mão em seu ombro. – Peço que me desculpe por minha empolgação com este assunto, mas é que eu raramente tenho com quem falar aqui no campo. Meus vizinhos, em sua maioria, são pessoas que não foram estimuladas a apreciar as artes, mal podem dar-se ao luxo de comprar a entrada para essas exposições.

Ele assentiu.

– Não é necessário que se desculpe, senhor. Asseguro-lhe que apreciei a conversa em igual medida. – Ethan deu alguns passos e seguiu examinando outros quadros. – Confesso que fiquei surpreso ao descobrir que a senhorita Crane possui um talento tão... peculiar.

– Peculiar ou impressionante? – retorquiu Benedict.

– Perdão?

– Anteriormente, quando supunha que este era um dos meus quadros, você se referiu à obra como impressionante. – esclareceu, em um tom seco. – Agora que sabe que foi pintado por uma...

O diálogo foi, de repente, interrompido por uma profusão de risadas. O som invadia a janela que se encontrava aberta, preenchendo toda a sala. Eram risos de crianças, provavelmente dos netos do Sr. Bridgerton, refletiu Ethan. Ele viu quando Benedict andou até a janela, inclinou-se para fora e imediatamente um sorriso amoldou-se em seu rosto.

– Você precisará ser mais veloz do que isso se deseja me pegar. – uma voz feminina anunciou. Era Agatha Crane, ele reconhecera sua voz inconfundível.

– Está um belo dia lá fora, certamente um passeio ao ar livre o agradará bem mais que esta sala cheirando a tinta. – Benedict opinou.

Ele assentiu e em seguida deixou a sala, indo em direção aos jardins da propriedade. Enquanto caminhava pelos corredores, foi subitamente confrontado em seu interior por aquela pergunta inacabada. Ethan sabia o que o Sr. Bridgerton diria a seguir, se não houvesse sido bruscamente interrompido pela profusão de risos e vozes. Sentiu-se grato por não precisar adentrar naquele assunto com ele, certamente a resposta não agradaria um tio devoto.  Entretanto, para si mesmo, foi incapaz de ocultar que descobrir que Agatha pintara aquele quadro despertara nele certo senso de reprovação, o qual fora duramente enraizado em sua mentalidade desde que o ensinaram sobre as diferenças entre homens e mulheres. Jovens bem-nascidas eram incentivadas à retratarem paisagens etéreas, formadas por campinas verdejantes e flores delicadas. A paleta de cores de claras e discretas proporcionava uma aparência modesta à pintura, o que era apreciado em demasia. Uma mulher deveria expressar-se raramente, e quando o fizesse, deveria ser de modo comedido, em todos os aspectos, até mesmo através de um singelo quadro. Aquele pássaro, indescritivelmente perturbador, era inapropriado para mãos femininas.
Será que gostava menos da tela agora que sabia que Agatha a pintara? Ele questionou-se.
No jardim, encontrou Agatha correndo em círculos, sendo perseguida de perto por um grupo de crianças eufóricas. Aproveitando que ela não o vira chegar, ocultou seu corpo atrás de uma sebe e, refugiado naquele esconderijo improvisado, permitiu-se observá-la em segredo, fitando seus olhos e comparando-os com os olhos do pássaro, buscando desvendar quantas semelhanças de anseios existiam entre eles. Ethan não planejara, mas sua imaginação aguçada fez surgir em sua mente a figura de Agatha Crane, com os dedos finos manchados de tinta fresca, o olhar obstinado concentrado na tela em branco à sua frente, delineando a imagem a qual desejava dar vida. Em seu rosto decerto haveria um sorriso emoldurado assim que se desse por satisfeita com seu trabalho. Seria um sorriso triunfante e de extremo contentamento, que faria dela uma visão mais magnífica que sua própria arte. Ah, sim, sem nenhum propósito específico, ele a imaginou de cabelos soltos enquanto pintava. Cada fio movido pela vontade impetuosa do vento, livres para passearem pelo ar.
Ethan foi invadido repentinamente com a convicção que aquele grande pássaro era mais apreciado por ele naquele momento, do que jamais seria se continuasse a supor que a obra fora uma criação de Benedict Bridgerton. Um gosto amargo desceu-lhe pela garganta quando viu-se obrigado a engolir a própria hipocrisia. Era penoso reconhecer em seu íntimo que ele admirava aquilo jurou repudiar. Mas, a despeito das falhas de caráter presentes em Agatha, aquela mulher carregava a alma nas pontas dos dedos. Tinha talento. Tinha tenacidade.  E pela primeira vez em muito tempo Ethan sentiu-se impelido a permitir que suas palavras fossem mais que simples ecos ressoantes das opiniões que a sociedade impunha. Desejou ardentemente estar de volta à sala de pintura de Benedict para dizer-lhe que reverenciava uma  artista tão singular e brilhante como a sua adorável sobrinha.

Certa vez, seu amigo Stephen Smythe-Smith o acusara de cultivar uma mentalidade tacanha, chafurdada em conceitos arcaicos e preconceituosos, por insurgir-se contra a proliferação de empresários de nascimento simplório, que cada vez mais se relacionavam com a nobreza. Ethan não lhe deu ouvidos à época, não via nada de condenável em defender seus direitos de nascença, que seriam também os direitos de seus futuros herdeiros. A imutabilidade de posições lhe conveniente. Mas ali, sendo influenciado pelo sorriso reluzente com o qual Agatha agraciava àquelas crianças, ele só conseguia pensar que não havia realmente um bom motivo para ela fosse desencorajada de pintar livremente. Tampouco era preferível que ela se escondesse atrás de um nome masculino ao invés de receber os méritos por seu próprio dom.
Se seus pares pudessem ouvir seus pensamentos naquele instante...
Deus do céu, aparentemente, o pássaro de Agatha havia feito um ninho em sua cabeça.
– Peguei você! – uma menininha anunciou, cutucando sua perna, surpreendendo-o.
– Perdão?
– Nós estamos brincando de pega-pega. – ela disse. – Você não pode ficar parado aí como uma estátua e esperar vencer este jogo.
Ele olhou para a criança com simpatia.
– Considerando que eu desconhecia o fato de estar participando da brincadeira, acredito que a vitória seja algo com a qual eu não contava, por assim dizer.
Ela riu.
– Dou-lhe minha palavra que brincar conosco será muito mais divertido do que continuar imóvel, encarando-nos. – salientou com ar de sabedoria – A senhorita Crane organiza as melhores brincadeiras. Nada nunca é aborrecido quando contamos com a sua presença.
- É mesmo? - ela indagou, abaixando-se para ficar à mesma altura da menininha.
- Oh, sim. O senhor irá gostar de brincar conosco. - ela segurou a mão dele. - E hoje estamos todos nos comportando bem, uma vez que a senhorita Crane machucou-se e sente dores no braço.
A alusão ao incidente na carruagem o fez lembrar-se do beijo.
– Ela não devia correr por aí ferida. – Recriminou. Imagens dela caindo afligiram sua mente. - Não é um bom exemplo para os demais. Pode ser perigoso.
– Nós não somos moldes a sermos replicados. Somos indivíduos. – A garotinha lhe respondeu prontamente.
Ethan arqueou a sobrancelha, aturdido.
– Quantos anos tem?
– Dez.
– E quem lhe ensinou isso?
– A senhorita Crane.
É claro, pensou ele, quem mais seria?
– E você sabe o que significa?
O semblante da menina perdeu um pouco do brilho.
– Não muito. - Confessou, entristecida. - Mas é uma frase que a senhorita Crane sempre recita quando contrariada. E ela prometeu-me que um dia me explicará sobre o que se trata.
– Tenho certeza que ela tentará. - Ethan pontuou em um tom sério, levantando-se.
Míseros segundos de silêncio passaram antes de a criança voltar a falar:
– E então, brincará conosco?
Seu primeiro impulso foi recusar a oferta. Era ridículo imaginar a si próprio correndo pela propriedade, envolto por crianças de modos selvagens. E também tinha Agatha, que certamente se irritaria com a sua presença. Ele só não conseguia definir se essa era uma circunstância negativa ou positiva.
– Venha, senhor. – A garota insistiu, um olhar suplicante que fez o coração dele se dilatar. – Acredite em mim, a senhorita Crane...
– Organiza as melhores brincadeiras. – Ela completou, interrompendo-a. – Eu já entendi. – Fez uma pausa, e, então, sorrindo acrescentou: – Possivelmente isso deve-se ao fato que a senhorita Crane iguala com todos vocês em idade mental.
A menina riu, mas logo tampou a boca para reprimir aquele gesto, como se fosse uma grave traição.
– Eu ouvi isso, Denbrook. – A voz feminina irritada vibrou em suas costas.
Ele virou e encontrou Agatha à sua frente, fulminando-o com os olhos.
– Não teve nenhuma graça, senhor. – Condenou a garotinha em tom severo, pondo-se ao lado de Agatha.
Ela olhou de soslaio para a menina.
– Eu a vi rindo, Ellie. – Revelou, fingindo ressentimento.
– Oh. – A pequena Ellie arregalou os olhos, envergonhada. – Por gentileza, apenas. Não queria que esse senhor se sentisse constrangido por ser desprovido de senso de humor...
Ethan desejou conter-se, mas acabou rindo ruidosamente ao ver como a garotinha ansiava provar sua lealdade à senhorita Crane. Para sua surpresa, percebeu que a risada de Agatha se unia a dele, em uma harmonia melodiosa.
– Está tudo bem. – disse Agatha, passando um dos seus braços pelos ombros da menina. – Não estou aborrecida, querida. Até eu me vejo compelida a reconhecer que lorde Denbrook possui um irrisório grau de humor que, quando extraído com esforço, pode ser considerado engraçado.
– Sinto-me lisonjeado. – ele disse com ironia, elevando a mão ao peito teatralmente.
Agatha riu. Riu dele, mas não importava, pois o som era sincero e delicioso de se ouvir. Ethan também acabou rindo. E até a pequena Ellie caíra na gargalhada.
– Oh, você precisa brincar conosco. – A menina insistiu assim que se recompôs. – Por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
– Ela é capaz de fazer isso pelo dia inteiro. – sussurrou Agatha, com ar conspiratório, inclinando-se para que as palavras fossem ouvidas apenas por ele. – Você poderia entretê-los enquanto eu descanso um pouco o braço?
Ele olhou para o braço recolhido junto ao corpo dela. Devia estar dolorido, pois ela o mantivera imóvel todo momento desde que se reencontraram. Um sentimento estranho e inominado apossou-se do seu coração naquele instante, fazendo com que desejasse livrá-la daquela dor. Ou, no mínimo, assisti-la em seu sofrimento.
– Claro, será um prazer.
Seguiu-a com o olhar à medida que ela se afastava para buscar repouso à sombra de um velho carvalho. Pela próxima hora ele correu atrás de crianças que ostentavam uma disposição hercúlea. Todavia, ocasionalmente, sua atenção recaia sobre Agatha Crane. Seus olhos, seduzidos, sempre voltavam para ela.

Como enlouquecer um condeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora