Rodrigo

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Eu estava ali, na sua frente
expondo minha alma


Puxo-a para a roda de poesia onde o pessoal está esperando chegarem algumas pessoas para começarmos. Minhas mãos estão suadas, mas não é pelo calor. Estou ansioso. Não quero que me chamem porque a poesia que havia preparado talvez seja dizer demais de mim, expor demais, mostrar dores de dentro e sei que é muito cedo para isso.

Mesmo assim havia algo nessa garota linda que me deixava meio sem noção, fora de órbita. Eu ficava com várias meninas por aí, mas nunca havia sentido vontade de mostrar mais do que o necessário. Renata vem me cumprimentar e apresento-a para Julia. Ela logo engata em uma conversa animada, como sempre, preenchendo o ambiente com a sua vontade de compartilhar de si. Talvez eu devesse ser mais como ela.

Diego, organizador do sarau, pede silêncio e sugere que Renata comece. Ela sorri, finaliza a conversa com Julia e vai ao centro. Começa a recitar cada palavra de sua poesia como se fosse um grito de liberdade, em uma tonalidade que nos desperta. 

— Ei, querida
Eu tava perdida
Mas não se engana não que isso é passado
Antes eu fugia de mim
Mas agora eu não me largo

Os olhares são tortos
As cabeças se viram
Depois que eu entendi
Que meu cabelo curto
Me representa bem mais na frente do espelho

Há quem se confunda
Achando até que eu quero ser homem
Andar por aí sem camisa sem precisar esconder um decote
Mas meu bem não se engane
Aqui não há nem 1% de macho
Eu só queria era mesmo
IGUALDADE

Sou mulher
Independente do traje
Do linguajar
Da sexualidade

Mas se pá tu não entende
Por causa dessa sociedade
Machista
Misógina
Homofóbica

Aqui nois é engolida
Só de ter nascido com vagina

Ops, shh
Fala baixo
Pau você vê pra todo lado
Mas imagina, vagina é o pior tipo de palavreado

Aqui querida,
Vem comigo,
no país que mais mata minas
Nois precisa mesmo é ser abrigo

Eu sou sapatao,
Tudo bem se tu não
Aqui nois não da vez pro padrão
se tu não aprendeu
Volta no início e refaz a lição
Se no teu mundo o pau é o centro da atenção 
No meu, o teu pau é sarjeta
Porque aqui
A dona da porra toda
Tem buceta!

Enquanto a galera explode em palmas e assobios, observo Julia com os olhos arregalados xingando baixo:

— Puta que pariu!

Rio comigo mesmo, tentando imaginar o que se passa naquela cabecinha. Não sei se está chocada no bom sentido e espero ela dizer algo direcionado a mim, mas o sarau continua e outras pessoas vão recitando suas realidades, pouco a pouco. Eu continuava nervoso. Não sabia o que pensar. Julia sorria às vezes, aplaudia, e às vezes só ficava séria e impassível. Tentei manter o pensamento positivo: pelo menos ela ainda não tinha ido embora.
Continuo observando cada reação e detalhes, escrutinando seu rosto, mas sou tirado do meu transe quando ouço meu nome, quase no fim do evento.

— Isso aí Rodrigo, é sua vez!
Respiro fundo e vou até o centro. Apesar de saber que aquilo era me expor, rápido demais, não consegui resistir. No fundo eu sabia que eles iriam me pedir e eu queria me expor a ela. Queria compartilhar um pedaço de mim.

— O sangue que corre
aqui dentro
não significa nada
Teu dinheiro te deu frutos
mas a mim
veio como granada

Ganância
Viciado em dinheiro
Vende até alma
Pra não perder a herança

Eu não,
Tive a sorte de
Você não ser forte
Não agir como homem
Ter a coragem de uma mulher
Pra arrumar a desordem
Que você plantou
Cultivou
Enganou

Teu dinheiro é sujo
Tua alma é lenda
É bom respeitar a quebrada
Porque aqui tu nunca mais entra

Ela era a força
nunca vi aquela mulher
Reclamar de lavar uma louça
Cuidar das crianças
Ouvir tanta bosta
Dessa sociedade machista
Que a mulher só isola

No pé do mundo
Ela era a sola
Mas nois? Nunca na vida precisou de esmola
Ela ralou!
Encarou a vergonha
Assumiu sua bronca
Deixou de lado até a sua maior esperança
Assumiu a minha
No medo de sustentar uma família
Sozinha
Encarou o mundo!

Pode ter faltado tudo
Mas nunca faltou amor
Desses que tu
Tu mesmo, meu senhor
Nunca nem experimentou

Ela era a força que tu? Era tão fraco que num controlou
Agora? Segura a tua.
Que essa mulher
É meu maior amor.

O pessoal explode em palmas mais uma vez e abaixo a cabeça. Nunca me acostumo com isso.

Vou até Julia e a galera começa a se dispersar. Ela está com um sorriso de orelha a orelha e não consigo saber se é de deboche ou sei lá, talvez... orgulho?

— E aí? Ainda me acha o cara chato que faz Ciências Sociais ou...

Ela me puxa pelo pescoço e me beija com um desejo inexplicável. Retribuo com prazer e intensidade e seus lábios esquentam meu corpo mais uma vez, como em todos os seus beijos. Em seguida pergunto, fazendo graça:

— Isso significa que gostou mesmo ou...

— Claro que gostei, Rodrigo.  Foi chocante, sim. Achei até meio exagerado em alguns momentos e discordei também de certas...

—  EXAGERADO? Como assim exagerado? —  Interrompo com raiva. — É a realidade crua que ninguém quer ver...

— O importante é dizer que... —  retruca colocando a mão em meu rosto, fazendo-me sentir cada terminação nervosa, a textura dos seus dedos, embaralhando meus pensamentos — Você... —  Seu olhar intenso encara o fundo dos meus olhos como se me visse por dentro. E, de fato, ela viu. —  Você... — levanto uma sobrancelha, esperando o fim da frase, mas parece que meu olhar queimando sobre ela tem o mesmo efeito que ela tem em mim. — Você é incrível.

Sorrio feito bobo e logo me recomponho:

— É claro que sou! — rio mais ainda, tentando disfarçar. Que droga. Não posso me perder, ela não pode fazer eu me sentir assim. De qualquer forma, deve ser só uma paixonite, certo? — Falando assim posso até te perdoar por dizer que nossa poesia é exagerada.

— É melhor perdoar mesmo, caso contrário não revelo seu apelidinho carinhoso.

— Ah, qual é, eu mereço saber!

— Tudo bem então, meu poeta...

Solto uma gargalhada involuntariamente e ela me dá um tapinha de repreensão.

— Que foi Rodrigo?

— Ah, puta merda Julia, você tem o melhor beijo da minha vida e eu sou "o poeta"? Primeiro que nem considero poesia de verdade, sei lá é o que eu escrevo quando quero tirar algo pra fora de mim, não poesia real.

— Você está sendo modesto.

— Não, é sério! Sem contar que, pensando aqui, pra ser justo eu que deveria escolher, já que você escolheu o seu. E vai ser Rodrigo, o cara da melhor transa da sua vida!

Ela me estapeia novamente e reclama

— Babaca! E eu nem posso dizer isso com propriedade, já que...

— Não seja por isso minha linda... — Levanto as sobrancelhas sugestivamente e ela me corta.

— Só nos seus sonhos, idiota!

—  Ah, isso pode apostar que sim!

Ela tenta conter a risada com uma cara de brava, mas não consegue. Rimos juntos do quanto somos bobos e então quando o riso cessa ela questiona, séria:

— Posso te perguntar uma coisa?
E então concluo que minha poesia foi só o começo... Agora era o momento em que eu começaria a me expor de verdade.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 09, 2018 ⏰

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