Capítulo 2 - Lorna

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A casa de Lorna estava sempre alaranjada aos finais da tarde. Por conta das velas, e do frio encoberto pelo calor do fogo, a casa flamejava, dando ao ambiente um tom movimentado e incerto, mas ainda assim sagrado.

Assim também era Lorna. Filha de camponeses já falecidos na antiga guerra, a garota era independente e, como diziam os colegas, "meio fria e introvertida". Seu jeito sério e observador afastava um pouco as pessoas, que sempre achavam que ela estava com a cabeça em outro lugar.

Isso é certo. Lorna nunca parecia estar vivendo a mesma realidade que as outras pessoas. Quando indagada, dizia que era muito ligada aos deuses e que, por isso, acabava se afastando dos demais.

A população desconfiava de sua ligação com os deuses. Achavam que Lorna era muito audaciosa em dizer que falava com eles dia e noite. Ainda mais porque a garota era simples, e não levava consigo nenhum amuleto ou marca de Triskle. Essa desconfiança afastava as pessoas, e deixava a garota ainda mais sozinha.

- Lorna, onde está meu vestido? - Falou uma voz fininha e sonolenta – toda vez que você mexe no quarto, eu perco alguma coisa.

- No cesto de vime, Geni – disse Lorna, com paciência, retirando um recipiente de água fervendo do fogo.

A menininha saiu bufando e batendo os pés. Isso fez Lorna rir. Genevieve era sua irmã mais nova e, mesmo com a pouca idade, já tinha opiniões formadas e personalidade forte. Desde a guerra, Lorna cuida dela com instinto quase maternal, ensinando-a bons costumes e preceitos do povoado.

Após a caça ao vestido, Genevieve se sentou à mesa pequena que ficava no centro da cozinha. Sua irmã já estava servindo o chá, que tinha um cheiro doce e mentolado. Um vento frio entrou pela janela, mas Lorna logo fechou, mantendo o ambiente quente e aconchegante.

Lorna sentou-se à mesa, e as duas irmãs se entreolharam, cerraram os olhos e repetiram em uníssono:

- Pela Deusa-Mãe, a força do dia. Por Tailtiu e Macha, a braveza da natureza. Por Tan Hill, o calor do fogo. E por Epona, a coragem dos cavalos. Hoje, amanhã e para sempre, até o cair das estrelas.

Terminada a oração matinal de costume, ambas começaram a fazer o desjejum.

- Estou ansiosa para saber qual o ensinamento do dia de hoje – disse a criança, dando a primeira golada no chá. Suas mãos pequenas seguravam uma xícara de barro rústica e um pouco amassada.

- Eu também estou! Mas você sabe: se não há dia...

- Não há ensinamento – disse a menininha, completando a frase da irmã.

- Isso mesmo. Vamos esperar o decorrer do dia e, assim, saberemos qual o nosso ensinamento.

Lorna fazia isso desde o dia em que as duas perderam os pais na guerra. Ela dizia a Genevieve que, mesmo depois de um dia difícil ou triste, há um ensinamento. E, assim, ainda que as coisas não saíssem como o esperado, seriam mais fortes e mais inteligentes.

- Agora, vamos Geni. Hoje é um dia muito importante. O rei Lancelot traçará a primeira estratégia para encontrar o escolhido pelos deuses – disse Lorna, engolindo o último pedaço de um pão de centeio.

Fazia muito frio lá fora. Por isso, ambas vestiram, por cima de seus vestidos longos, um casaco de pele de urso. O casaco de Lorna era de seu pai, e o casaco de Genevieve, da sua mãe. Lorna observou a irmã vestindo o casaco muito maior do que ela. Aquilo lhe trouxe boas lembranças e uma saudade avassaladora, que trouxe consigo a raiva. Lorna fechou o semblante:

- Vamos achar o escolhido.

Ariosto e o Amuleto de TriskleWhere stories live. Discover now