CAPÍTULO • 02 (Degustação)

Comenzar desde el principio
                                    

— Mais? — brinco. — Confusão é o meu nome do meio, não tem problema não. O senhor sabe que aquela madame mereceu o banho que eu dei nela.

— Claro que sim! — Ele me dá palmadinhas no ombro. Passa os olhos pelo pequeno comércio e sua feição esmorece. — Essa gente rica é perigosa, menina.

— Perigosa sou eu com fome, senhor Bunowski. Com fome, pobre e desempregada então, nem se fala!

Nós dois rimos, mas, no fundo, a verdade é mais cruel e menos engraçada. O mundo pertence aos poderosos, o resto só nada contra a corrente e torce para não se afogar. Abro os braços para abraçar meu ex-chefe, mas o homem é duro como pedra e nem se move, então só reviro os olhos e aceno com a mão. Russos...

— Juízo — resmunga, acenando um dedo trêmulo para o meu rosto. Retira um envelope lacrado da gaveta ao lado do caixa e entrega meu último pagamento.

— Nunca ouvi falar — cantarolo. Pego o dinheiro e viro de costas, seguindo para a saída.

Há dois meses, quando entrei nessa loja humilde pela primeira vez, não imaginava que enfrentaria tantos obstáculos. Trabalhar sete dias por semana em três empregos diferentes nunca foi o meu sonho de vida, mas era isso ou morar debaixo da Krymsky, ou da Ponte do Metrô Luzhniki, ambas muito frias e terrivelmente inadequadas para moradia a longo prazo.

Como todos os problemas que enfrento na vida, dessa vez também não olho para trás. O sino antiquado se despede com um último badalar quando abro a porta e, assim que ela se fecha atrás de mim, não ouço mais ruído algum.

Já é passado, hora de seguir em frente e arrumar um novo emprego, por pior que sejam as circunstâncias.

Abraço meu corpo em busca de mais calor. A primavera em Moscou é menos rigorosa do que o inverno, mas não se isenta do frio por períodos mais longos como acontece no verão. Ainda assim, é de longe minha estação preferida, especialmente agora que o degelo se foi e as pessoas começam a se despir dos casacos pesados.

Preciso ocupar meus finais de semana, e os únicos lugares que disponibilizam vagas nesses dias envolvem longos períodos atrás de balcões em clubes noturnos. Geralmente prefiro não arriscar, mas meu emprego no restaurante da Raissa não vai ser o bastante para arcar com as despesas do próximo mês.

O melhor lugar para encontrar empregos esporádicos é no centro da capital, o berço dos turistas e nascente da economia. Serão trinta minutos de caminhada com um belíssimo par de botas estupidamente equipado com saltos de quinze centímetros que deslizam no asfalto úmido. Cair com a cara no chão é um risco que consigo aguentar.

Faço um nó no meu longo cabelo preto antes que a situação fique ainda pior por causa da brisa que nunca abandona Moscou.

Para uma estrangeira, é sempre dez vezes mais complicado conquistar a confiança dos empregadores, que exigem diplomas e outras habilidades das quais não disponho. Mas tenho conseguido sobreviver assim desde a morte dos meus pais.

Visualizo o Kremlin muito tempo antes de alcançar o Jardim de Alexandre, com seus portões ornados com símbolos das forças armadas russas. Em um ponto mais distante, algumas crianças brincam nas bordas da fonte de Zurab Tsereteli, com os jatos de água a jorrar sobre os quatro cavalos de bronze empinados sobre as patas traseiras.

Gostaria de ter tempo para apreciar a cerimônia de troca da guarda no Túmulo do Soldado Desconhecido, o solene memorial da Segunda Guerra Mundial. Se existe alguma beleza no sofrimento, o resultado dessa mistura incomum e controversa pode ser representado pelos dois soldados que trocam o posto de hora em hora, ao lado da chama ardente que zela pelo monumento histórico.

Entre Acasos e Destinos | LIVRO 2 | DEGUSTAÇÃODonde viven las historias. Descúbrelo ahora