Capítulo 1

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  Não se entra em uma corrida para perder.Diana se aquecia na linha de largada. As panturrilhas estavamrígidas como cordas de arcos, as palavras da mãe reverberavam emseus ouvidos. Uma multidão havia se reunido para assistir às disputasde luta e lançamento de dardo que marcariam o início dosJogos Nemeus. Entretanto, a prova mais aguardada era a corrida,e as arquibancadas estavam em polvorosa com a notícia de que afilha da rainha participaria da competição.Ao avistar Diana entre as corredoras, Hipólita não demonstrousurpresa. Conforme a tradição, desceu de sua plataforma de observaçãopara desejar boa sorte às atletas, soltando um gracejo aquie oferecendo uma palavra de incentivo ali. Deu um breve acenode cabeça para Diana, sem demonstrar qualquer favoritismo, massussurrou, tão baixo que apenas a filha pôde ouvir:– Não se entra em uma corrida para perder.Amazonas ladeavam o caminho que dava para fora da arena epediam o início dos jogos, como num grito de guerra. À direita deDiana, Rani abriu um sorriso radiante.– Boa sorte hoje. Ela era sempre gentil, graciosa e, claro, vitoriosa. À esquerda deDiana, Tira soltou uma bufada e rebateu, balançando a cabeça:– Ela vai precisar.Diana a ignorou. Fazia semanas que ansiava pela corrida, queconsistia em uma longa trilha para reaver uma das bandeiras vermelhaspenduradas sob o grande domo em Bana-Mighdall. Se fosseuma prova apenas de velocidade, ela não teria chance. Ainda nãohavia alcançado a totalidade de sua força de amazona. Com o tempo,você chega lá, prometera a mãe, só que ela fazia muitas promessasque nem sempre se realizavam.Aquela corrida era diferente. Requeria estratégia, e Diana tinhase preparado. Treinara às escondidas com Maeve, aprimorando suavelocidade e traçando uma rota por um terreno mais acidentado,porém sem dúvida era um percurso mais linear até a ponta oeste dailha. Ela havia até... bem, não exatamente espionado... mas colhidoinformações das outras participantes. Ainda era a menor, e com certezaa mais jovem, mas dera uma boa espichada no último ano e jáestava quase do tamanho de Tira.Não preciso de sorte, disse a si mesma. Então encarou a fileirade amazonas na linha de largada. Parecia uma tropa se preparandopara a guerra. É, um pouquinho de sorte também não faria mal. Elaqueria aquela coroa de louros. Era algo que podia conquistar em vezde simplesmente receber.No meio da multidão, avistou os cabelos ruivos e o rosto sardentode Maeve e abriu um sorriso, tentando transmitir confiança. Aamiga retribuiu o sorriso e sussurrou:– Não se precipite.Diana revirou os olhos, mas assentiu e tentou respirar mais devagar.Tinha o péssimo hábito de disparar logo na largada e desperdiçarenergia. Clareou a mente e tentou se concentrar no trajetoenquanto Tecmessa caminhava pela fileira vistoriando as corredoras,com joias reluzindo em seus cachos e pulseiras de prata cintilandonos braços morenos. Ela era a conselheira mais íntima deHipólita, tinha a posição mais importante depois da rainha e secomportava como se seu vestido índigo cintado fosse uma armadurade batalha. – Pegue leve, Píxide – murmurou Tec para Diana ao passar. –Não quero ver você se despedaçar.Diana ouviu Tira soltar outra risada, mas se recusou a demonstrarincômodo ao ouvir o apelido. Quero ver a sua cara quando me virsubindo no pódio.Tec ergueu as mãos para pedir silêncio e fez uma mesura paraHipólita, que estava sentada entre duas outras integrantes do Conselhodas Amazonas no camarote real – uma plataforma alta, protegidada luz por uma cobertura de seda tingida de azul e vermelho,as cores vibrantes da rainha. Diana sabia que era ali que sua mãequeria que ela estivesse naquele exato instante: sentada a seu lado,aguardando o início dos jogos em vez de competindo. Nada dissoteria importância depois que ela vencesse.Hipólita vestia sua elegante túnica branca, calças de montaria eum diadema simples na cabeça. Era, nos mínimos detalhes, a rainha.Parecia serena e tranquila, mas, se assim o desejasse, poderia dar umsalto e entrar na competição a qualquer momento.Tec se dirigiu às atletas reunidas nas areias da arena.– Pela honra de quem vocês competem?– Pela glória das amazonas – responderam em uníssono. – Pelaglória da nossa rainha.Diana sentiu o coração acelerar. Jamais entoara essas palavrasantes, não como competidora.– A quem exaltamos todos os dias? – bradou Tec.– A Hera, Atena, Deméter, Héstia, Afrodite e Ártemis – responderamem coro.Estas eram as deusas que haviam criado Temiscira e a entregadoa Hipólita como local de refúgio.Tec fez uma pausa e, ao longo da fileira, Diana ouviu o sussurrodos outros nomes: Oyá, Durga, Freia, Maria, Jael. Outrora proferidosna hora da morte, nas últimas orações de guerreiras abatidasem batalha, eram palavras que possibilitaram que fossem trazidasàquela ilha e que lhes concederam vida nova como amazonas. Ao ladode Diana, Rani levou aos lábios o amuleto retangular que sempreusava e murmurou o nome das Matri, as sete mães que combatiamos demônios.  Tec ergueu uma bandeira vermelha idêntica à que aguardava ascorredoras em Bana-Mighdall.– Que a ilha as conduza a uma vitória justa!Ela baixou a seda vermelha e a multidão urrou. As corredoras selançaram em direção ao arco leste: a corrida havia começado. Dianae Maeve haviam previsto o tumulto inicial. Ainda assim, sentiramuma pontada de frustração ao ver as atletas aglomeradas na boca dotúnel de pedras, um emaranhado de túnicas brancas, braços e pernasmusculosos, o eco dos passos, todas tentando sair da arena ao mesmotempo. Então alcançaram a estrada e avançaram pela ilha, cadauma seguindo o próprio percurso.Não se entra em uma corrida para perder.Diana ajustou as passadas ao ritmo dessas palavras, os pés descal-ços atingindo a terra batida da estrada que a levaria pelo emaranhadoda Floresta Cibeliana até a margem norte da ilha.Em geral, a caminhada para cruzar aquela floresta era longa elenta, dificultada por árvores caídas e vinhas tão grossas que só sepodia abrir caminho com um facão. Entretanto, Diana delinearamuito bem seu trajeto. Uma hora depois de adentrar a mata, irrompeuem meio às árvores na estrada costeira deserta. O vento levantouseus cabelos e uma rajada de sal lhe açoitou o rosto. Respiroufundo e conferiu a posição do sol. Sairia vencedora.Ela havia mapeado o percurso na semana anterior com Maeve, eambas o completaram duas vezes em segredo, sob a luz cinzenta damanhã, quando suas irmãs ainda se levantavam da cama, os fogõesainda eram aquecidos e os únicos curiosos com quem tinham quese preocupar eram os madrugadores que saíam para caçar ou fazer apesca do dia. Porém, os caçadores se limitavam às matas e aos pradosbem mais longe ao sul, e ninguém pescava para além daquela parteda costa; não havia bons pontos de partida para os barcos, somenteos penhascos íngremes cor de aço que mergulhavam direto no mar,além de um abrigo diminuto e hostil acessado apenas por um caminhotão estreito que só se podia descê-lo de lado, arrastando os pés,com as costas coladas à rocha.A margem norte era cinza, sombria e inóspita, e Diana conheciacada cantinho daquele cenário secreto, os rochedos e as grutas, as poças de maré apinhadas de lapas e as anêmonas. Era um bomlugar para ficar sozinha. A ilha se empenha em agradar, explicara amãe uma vez. Por isso Temiscira era arborizada por sequoias em unspontos e seringueiras em outros; por isso ela podia passar a tardevagando pelos pastos, montada em um pônei, e a noite em um camelo,escalando uma encosta de dunas de areia sob o luar. Tudo issoeram fragmentos da vida que as amazonas haviam levado antes dechegarem à ilha, pequenas paisagens da alma.Diana às vezes se perguntava se a margem norte de Temisciraexistia apenas para ela, para que pudesse se desafiar escalando suasescarpas íngremes, para que pudesse ter um lugar para onde fugirquando o fardo de ser a filha de Hipólita ficasse pesado demais.Não se entra em uma corrida para perder.Essa não fora uma advertência corriqueira da mãe. As perdas deDiana eram muito diferentes, ambas sabiam disso – e não apenas porsua condição de princesa.Diana quase sentia o olhar sagaz de Tec, quase ouvia sua vozdebochada. Pegue leve, Píxide. Era assim que Tec a apelidara: Píxide.Um pequeno vaso de barro, feito para guardar joias ou tintura decarmim para os lábios. O nome era inofensivo, provocativo, sempreentoado de maneira afetuosa – pelo menos era o que Tec alegava.Mas sempre machucava: fazia Diana se lembrar de que não se equiparavaàs outras amazonas, que isso jamais aconteceria. Suas irmãseram guerreiras experientes, forjadas a ferro pelo sofrimento e talhadasà perfeição ao passar da vida à imortalidade. Todas haviamconquistado seu lugar em Temiscira. Exceto Diana, nascida do soloda ilha e do desejo de Hipólita por uma filha, moldada no barro pelasmãos de sua mãe. Pegue leve, Píxide. Não quero ver você se despedaçar.Diana acalmou a respiração, manteve os passos firmes. Hoje não,Tec. Hoje os louros pertencem a mim.Ela deu uma olhadela para o horizonte, deixando que a brisa domar resfriasse o suor em sua testa. Avistou a silhueta branca de umnavio além do nevoeiro. Estava bem perto da divisa, de modo queDiana pôde distinguir as velas. A embarcação era pequena – umaescuna, talvez? Tinha dificuldade em recordar detalhes náuticos.Mastro grande, mezena, mil nomes para as velas, o cordame. Uma coisa era estar em um barco, aprendendo com Teuta, que navegaracom piratas. Outra muito diferente era se enfiar na biblioteca emÉfeso e ficar encarando o desenho de um bergantim ou de umacaravela.Às vezes Maeve e ela brincavam de tentar localizar navios ouaviões, e uma vez chegaram a avistar o contorno de um cruzeiro nohorizonte. No entanto, a maioria dos mortais sabia que era precisomanter distância daquele canto em particular do Egeu, onde as bússolasrodopiavam e os instrumentos demonstravam súbita recusa emobedecer.Naquele dia uma tempestade parecia se formar para além do nevoeiroda divisa, e Diana lamentou não poder se deter para assistir.As chuvas que chegavam a Temiscira eram fracas, tediosas e previsí-veis, nada como o estrondo ameaçador dos trovões e o vislumbre daluz trêmula dos relâmpagos ao longe.Você tem saudade das tempestades?, perguntara Diana uma tarde,enquanto Maeve e ela relaxavam sob o sol no terraço do palácio,escutando o bramido estrondoso de um temporal. Maeve havia morridodurante a Emboscada de Crossbarry, e as últimas palavras quesaíram de seus lábios foram uma prece a Santa Brígida de Kildare.Ela era nova na ilha em relação às outras amazonas e viera de Cork,onde tempestades eram frequentes.Não, respondera Maeve em seu tom de voz cadenciado. Sintosaudade de uma boa xícara de chá, de dançar, dos rapazes... Mas,definitivamente, não da chuva.A gente dança, protestou Diana.Maeve soltou uma risada.A gente dança de um jeito diferente quando sabe que não vai viverpara sempre. Então ela se espreguiçara, a pele branca repleta desardas, feito densas nuvens de pólen. Acho que fui um gato em outravida, porque só quero me espreguiçar e ficar dormindo em um lugarquentinho.Não se precipite. Diana resistiu ao ímpeto de acelerar. Era difícilse conter quando se estava com o sol da manhã nos ombros e o ventonas costas. Ela se sentia forte. Era fácil se sentir assim quando estavaconsigo mesma. Um estrondo ecoou por sobre as ondas, um som metálico. Ospés de Diana vacilaram. No horizonte azul se elevou uma torre defumaça. A escuna estava em chamas. Em uma explosão, a proa sedespedaçou, um dos mastros desabou e a vela foi se arrastando pelaamurada.Diana percebeu que reduzia a velocidade, mas se forçou a retomaro ritmo das passadas. Nada havia a ser feito pela escuna. Aviõescaíam. Navios naufragavam nas rochas. Essa era a natureza do mundomortal. Ali o desastre podia acontecer, e com frequência acontecia.A vida humana era uma maré de sofrimento que jamais atingiaa margem da ilha. Diana se concentrou no trajeto. Bem longe, podiaver o brilho dourado do sol a reluzir no grande domo em Bana--Mighdall. Primeiro a bandeira vermelha, depois a coroa de louros.Esse era o plano.De repente, ela ouviu um grito.Uma gaivota, disse a si mesma. Não é possível que seja uma pessoa.Um grito humano não podia ser ouvido a uma distância tãogrande, certo? Não importava. Não havia nada que ela pudessefazer. Mesmo assim, seus olhos tornaram a mirar o horizonte. Sóquero tentar ver um pouco melhor, pensou. Tenho muito tempo. Estouadiantada.Não havia um bom motivo para se aproximar da beirada do rochedo.Ainda assim, ela o fez. As águas perto da orla estavam calmas,claras, um turquesa vibrante. O oceano era um poço bravio,um mar azul-escuro, já quase negro. A ilha podia se esforçar paraagradar a ela e suas irmãs, mas o mundo para além da divisa nãose preocupava com a felicidade ou a segurança de seus habitantes.Mesmo a distância, ela podia enxergar a escuna afundando. Porém,não via botes salva-vidas ou sinalizadores, apenas fragmentosda embarcação destruída levados pelas ondas revoltas. Era o fim.Diana esfregou os braços com vigor, afastando um súbito arrepio, ecomeçou a retornar para a trilha das carroças. A vida humana eraassim. Tantas vezes Maeve e ela haviam mergulhado perto da divisa,nadado em meio aos destroços de aviões, veleiros e lanchas reluzentes.A água salgada alterava a madeira, que endurecia e não apodrecia.Com os mortais era diferente. Eles serviam de alimento para os peixes do mar profundo e tubarões. O tempo os consumia lenta einevitavelmente, quer estivessem sob a água ou em terra firme.Diana tornou a conferir a posição do sol. Poderia estar em Bana-Mighdallem quarenta minutos, talvez menos. Perdera só algunsinstantes. Poderia compensar o tempo. Em vez disso, olhoupara trás.Todos os livros antigos contavam histórias sobre pessoas que cometeramo erro de olhar para trás. Ao deixar cidades em chamas.Ao sair do inferno. Apesar disso, Diana olhou para o navio que naufragavanas grandes ondas, todo inclinado, feito a asa quebrada deum pássaro.Calculou a extensão do topo do penhasco. Havia pedras pontudasna base. Se não desse impulso suficiente, o impacto seria feio.Mesmo assim, a queda não a mataria. Isso vale para uma amazona deverdade, pensou. Será que vale para você? Bem, esperava que sim. Dequalquer forma, a mãe a mataria.Diana encarou mais uma vez os destroços e deu um impulso.Correu a toda, ganhando velocidade a passadas largas, os braços semovendo no ritmo, reduzindo a distância até a beira do penhasco.Pare, pare, pare, clamou sua mente. Isso é loucura. Mesmo quehouvesse sobreviventes, não poderia fazer nada. Tentar salvá-los eraatrair o exílio, e não havia exceção à regra – nem para uma princesa.Pare. Ela não soube ao certo por que não obedeceu. Quis acreditarque foi porque seu peito abrigava um coração de heroína, que exigiauma resposta àquele chamado. No entanto, ao se lançar por sobre openhasco e avançar pelo céu vazio, soube que parte do que a impulsionavaera a provocação daquele grande mar cinzento, que não seinteressava por seu amor.Seu corpo descreveu um arco amplo no ar; os braços à frenteconduziam o caminho. Ela direcionou o corpo para a água e atravessoua superfície em um mergulho hábil, os ouvidos tomados por umsilêncio súbito, os músculos rijos à espera do impacto brutal das pedras...que não aconteceu. Ela avançou para cima, respirou fundo ecomeçou a nadar até a divisa, os braços transpassando a água morna.Aproximar-se da divisa era sempre meio empolgante, quando atemperatura da água começava a mudar: o frio lhe tocava primeiro as pontas dos dedos, depois invadia o couro cabeludo e os ombros. Dianae Maeve gostavam de nadar para além das praias ao sul, ousando ircada vez mais longe. Certa vez avistaram um navio que passava pelonevoeiro, com os marinheiros de pé na proa. Um dos homens tinhao braço apontado na direção das duas. Elas mergulharam para seproteger, gesticulando loucamente sob as ondas; gargalhavam tantoque retornaram à margem engasgadas com a água salgada.Poderíamos ser sereias!, gritara Maeve ao se jogar com Diana naareia morna, apesar de nenhuma das duas ser capaz de cantar bem.Passaram o resto da tarde entoando, desafinadas, canções violentasde bêbados irlandeses e rindo feito bobas, até que Tec as encontrara.Mais que depressa, calaram a boca. Transpor a divisa era umainfração leve. Ser vista por mortais em qualquer local próximo àilha era motivo para sérias ações disciplinares. E o que Diana estavafazendo agora?Pare. Mas ela não podia. Não enquanto aquele grito humano aindaecoasse em seus ouvidos. Diana sentiu a água fria depois da divisaengolfá-la por completo. O mar agora a possuía e não era amistoso.A corrente a puxou para baixo, uma força poderosa e revolta, o maissutil movimento de um deus. Você precisa lutar, percebeu ela, for-çando os músculos a corrigir o rumo. Jamais tivera que enfrentar ooceano.Ficou um tempo à deriva, tentando se localizar enquanto as ondasse encrespavam à sua volta. A água estava repleta de destroços,papéis flutuando, lascas de madeira, fragmentos de vidro, coletessalva-vidas cor de laranja que a tripulação decerto não tivera tempode vestir. Era quase impossível enxergar para além da chuva que caíae da neblina que envolvia a ilha.O que estou fazendo?, perguntou-se. Navios vêm e vão. Vidashumanas se perdem. Tornou a mergulhar e explorou as impetuosaságuas cinzentas, mas não viu ninguém.Subiu à tona. Sua própria estupidez lhe consumia as entranhas.Ela sacrificara a corrida. Justamente o momento em que suas irmãsa enxergariam de verdade, a chance de deixar a mãe orgulhosa. Emvez disso, abandonara a liderança, e para quê? Não havia nada alialém de destruição. De esguelha avistou uma silhueta branca, uma grande lasca doque poderia ter sido o casco do navio. Emergiu em uma onda, desapareceu,depois tornou a aparecer. Diana viu um braço esguio agarradofirme à lateral, os dedos abertos, as juntas dobradas. Então,desapareceu.Outra onda se elevou, uma imensa montanha cinzenta. Dianamergulhou, à procura. Por toda parte havia lascas de madeira, destroçose cacos de vidro; era impossível distinguir um fragmento denavio de outro.E lá surgiu outra vez – um braço, dois braços, um corpo, a cabeçaencurvada e os ombros arqueados, uma camisa amarelo-limão, umtufo de cabelos escuros. Uma garota. Ergueu a cabeça e arquejou,tentando respirar, os olhos injetados de pavor. Uma onda arrebentoupor cima dela, uma rajada de água branca. O fragmento de cascoemergiu. A garota não estava mais lá.Outro mergulho. Diana mirou o ponto onde vira a garota afundar.Avistou algo amarelo em um lampejo e arremeteu. Agarrouo tecido e puxou. O rosto de um fantasma emergiu da água turvadiante dela: cabelos louros, olhos azuis arregalados e sem vida. Elanunca vira um corpo de perto. Tampouco um rapaz. Recuou e soltoua camisa, mas, ao mesmo tempo que via o garoto desaparecer,assinalava as diferenças: maxilar marcado, rosto largo, tal e qual asimagens dos livros.Ela tornou a mergulhar, mas agora perdera por completo o sensode direção – as ondas, os destroços, a sombra da ilha em meioà névoa. Se nadasse para muito mais longe, talvez não fosse capazde voltar.Diana não conseguia se desvencilhar da imagem daquele bra-ço esguio, daqueles dedos ferozes agarrados à vida com tamanhaforça. Mais uma vez, disse a si mesma. Mergulhou, agora sentindoa água gélida se entranhar ainda mais profundamente em seusossos.Em um instante o mundo era uma corrente cinza e um marturvo; no momento seguinte lá estava a garota, em sua camisaamarelo-limão, o rosto virado para baixo, braços e pernas estirados.Tinha os olhos fechados. Diana a agarrou pela cintura e se içou com ela à superfície. Porum instante aterrador não conseguiu encontrar o contorno da ilha,e então a névoa se dissipou. Ela se impulsionou com as pernas paraa frente, enganchando desajeitadamente a garota contra o peito comum dos braços, os dedos da outra mão buscando seu pulso. Ali. Fracoe indistinto, porém presente. Embora a garota não respirasse, seucoração ainda batia.Diana hesitou. Ainda podia ver os contornos de Filos e Ectros,as rochas que demarcavam o início escarpado da divisa. As regraseram claras: não era permitido impedir a maré mortal da vida e damorte, e a ilha jamais deveria ser tocada por ela. Não havia exce-ções. Nenhum humano podia ser levado até Temiscira, mesmo quefosse para ter a vida salva. Quebrar essa regra significava apenasuma coisa: exílio.Exílio. A palavra era um lastro indesejável, um peso insustentável.Uma coisa era transpor a divisa, mas sua atitude seguintepoderia apartá-la para sempre da ilha, de suas irmãs, de sua mãe.O mundo parecia grande demais; o mar, profundo demais. Largue.Simples assim. Se Diana largasse a garota, seria como se jamais tivessesaltado daquele penhasco. Voltaria a ser livre daquele fardo.Pensou na firmeza e na fúria do punho cerrado da garota, nadeterminação em seus olhos antes de afundar com a onda. Sentiu oritmo irregular do pulso dela, uma batida distante. Viva, viva.E nadou até a margem.Enquanto cruzava a divisa com a garota nos braços, o nevoeirose dissipou e a chuva diminuiu. Um calor lhe invadiu o corpo. Eraestranho ver as águas calmas e inertes depois da violência do mar,mas Diana não reclamou.Quando seus pés tocaram a areia do chão, ela deu um impulsopara cima, ajeitando os braços para erguer a garota de dentrod'água. Era de uma leveza assustadora. Diana parecia estar segurandoum pardalzinho nas mãos. Não era de se espantar que o martivesse vitimado tão facilmente aquela criatura e seus companheirostripulantes.Diana a deitou delicadamente na areia e tornou a verificar seupulso. Agora não havia batimentos. Ela sabia que precisava fazer o coração da garota bater, tirar a água de seus pulmões, porém a lembrançado procedimento lhe era um pouco turva. Aprendera sobreressuscitação de vítimas de afogamento, mas jamais pusera esse conhecimentoem prática. Talvez não tivesse prestado muita atençãoà época. Que probabilidade tinha uma amazona de se afogar, aindamais nas águas calmas de Temiscira? Agora sua desatenção poderiacustar a vida da garota.Faça alguma coisa, disse a si mesma, tentando vencer o pânico.Por que tirou a garota da água se não vai fazer nada?Diana pôs dois dedos no esterno da menina e foi descendo, à procurado que esperava ser o ponto certo. Entrelaçou as mãos e pressionou.Os ossos se curvaram sob suas palmas. Mais que depressa,Diana recuou. De que ela era feita? De bambu? Tornou a pressionarcom delicadeza, depois de novo. Tapou o nariz da garota, aproximoua boca de seus frios lábios mortais e soprou.Viu o peito da garota subir, mas dessa vez a força extra foi vantajosa.A garota soltou uma tosse súbita, convulsionando o corpo ecuspindo água salgada. Diana pôs-se de joelhos e deu uma gargalhada.Ela conseguira. A garota estava viva.A realidade do que acabara de fazer a golpeou. Por todos os sabujosde Hades, ela havia conseguido de verdade! A garota estavamesmo viva!E tentava se sentar.– Pronto – disse Diana, firmando as costas dela com o braço.Não podia simplesmente ficar ali parada olhando a outra se debaterna areia feito um peixe, nem podia devolvê-la ao oceano. Podia?Não. Os mortais tinham exímio talento para se afogar.A garota agarrou o torso de Diana, sorvendo o ar com afoba-ção.– Os outros – disse, ofegante.Seus olhos estavam tão arregalados que Diana podia ver todo obranco ao redor das íris. Seu corpo inteiro tremia, e a amazona nãosabia ao certo se de frio ou choque.– Temos que ajudar...Diana balançou a cabeça. Se havia outros sinais de vida em meioaos destroços, não tinha visto. Além do mais, o tempo passava mais depressa no mundo mortal. Mesmo que ela nadasse de volta, a tempestadejá teria dado cabo dos corpos.– Eles morreram – respondeu Diana, desejando ter escolhido aspalavras com mais cuidado.A garota abriu a boca, em seguida a fechou. Seu corpo tremiacom tanta força que Diana achou que a veria se desintegrar. Isso nãopodia acontecer, podia?Diana observou o penhasco, acima da praia. Alguém poderiatê-la visto sair nadando. Tinha certeza de que nenhuma corredorahavia escolhido aquele trajeto, mas qualquer uma poderia ter visto aexplosão e ido investigar.– Preciso tirar você da praia. Consegue caminhar?A garota assentiu, mas rangia os dentes e não fez qualquer men-ção de se levantar. Diana tornou a encarar o penhasco.– Sério, levante-se.– Estou tentando.Ela não parecia estar se esforçando. Diana vasculhou a memóriaem busca de tudo que ouvira a respeito dos mortais: hábitos alimentares,temperatura corporal, regras culturais. Infelizmente, suamãe e suas tutoras estavam mais interessadas no que havia de piorneles: guerra, tortura, genocídio, poluição, erros gramaticais.A garota trêmula na areia à sua frente não parecia se encaixarnesse padrão, não parecia má. Tinha mais ou menos a idade de Diana,a pele escura, os cabelos compridos num emaranhado de trancinhascobertas de areia. Era visível que estava fraca demais para ferirqualquer um além de si mesma. Mesmo assim, podia representargrande perigo para Diana. Perigo de exílio. De banimento perpé-tuo. Melhor não pensar nisso agora. Em vez disso, recordou-se dasaulas com Teuta: Organize-se. As pessoas tendem a perder batalhaspor não saberem que guerra estão lutando.Muito bem... A garota não podia caminhar longas distâncias nacondição em que estava. Diana não tinha para onde levá-la. Tocouo ombro dela na esperança de reconfortá-la.– Escute, sei que você está fraca, mas a gente precisa sair dapraia.– Por quê? Diana hesitou, então optou por uma resposta vaga, ainda quetecnicamente verdadeira.– Maré alta.Pelo visto deu resultado, pois a garota assentiu. Diana se levantoue ofereceu a mão a ela.– Estou bem – disse a garota, pondo-se de joelhos com um impulsoe se levantando.– Você é teimosa – comentou Diana, guardando certo respeito.A garota tinha quase se afogado, mas não queria receber ajuda...e certamente não gostaria da sugestão que Diana daria emseguida.– Preciso que você monte nas minhas costas.A garota franziu a testa.– Por quê?– Porque acho que você não vai conseguir subir o paredão.– Não há outro caminho?– Não.Era mentira. Em vez de discutir, Diana virou as costas. Um minutodepois, sentiu um par de braços agarrar-lhe o pescoço. A garotadeu um salto, e Diana estendeu os braços para trás, segurou suascoxas e ajeitou seu corpo.– Segure firme.A garota enganchou os braços em seu pescoço.– Não tão forte! – protestou Diana, sufocada.– Desculpe!Ela afrouxou o braço. Diana começou a correr. A garota gemeu.– Vai mais devagar. Acho que vou vomitar.– Vomitar? – Diana vasculhou seus conhecimentos sobre as fun-ções corporais dos mortais e, mais que depressa, reduziu o passo.– Não se atreva!– Só não me deixe cair.– Você pesa o mesmo que um par de botinas. – Diana avançoupelos grandes rochedos que formavam a base do penhasco. – Tereique usar os braços para escalar, então você precisa se segurar com aspernas também.– Escalar? – O paredão.– Você está me levando para o alto do penhasco? Está louca?– Apenas segure firme e tente não me estrangular.Diana cravou os dedos na rocha e começou a escalada antesque a garota pudesse responder. Ela avançava depressa. O territórioera familiar. Diana subira aquele paredão incontáveis vezesdesde que começara a frequentar a margem norte. Aos 12 anos,descobrira a caverna onde ele desembocava. Havia outras cavernas,mais abaixo, na lateral do penhasco, mas elas enchiam quandoa maré subia.A garota soltou outro gemido.– Quase lá – disse Diana, para encorajá-la.– Estou de olhos fechados.– Boa ideia. Continue assim. É só não...– Vomitar em cima de você?– Isso – respondeu Diana. – Isso mesmo.As amazonas não ficavam doentes, mas o vômito aparecia eminúmeros romances e em descrições particularmente vívidas nos livrosde anatomia. Não parecia algo divertido...Enfim Diana alcançou o trecho de terra que demarcava a entradada caverna. A garota se soltou e suspirou fundo. A cavernaera estreita e surpreendentemente profunda, como se alguém tivesseescavado a pedra até o centro do penhasco. As paredes negras cintilavam,sempre úmidas de maresia.Quando pequena, Diana gostava de fingir que, caso seguisse andando,a passagem ultrapassaria o penhasco e desembocaria numaterra totalmente diferente. Só que isso não acontecia. Era só umacaverna e, por mais que ela desejasse, continuava sendo assim. Nãoadiantava imaginar.Diana esperou a visão se ajustar e continuou caminhando cavernaadentro, arrastando os pés. O antigo cobertor ainda estavalá – ainda que um pouco bolorento –, bem como sua latinha desuprimentos.Ela enrolou o cobertor nos ombros da garota.– A gente não vai para o topo? – perguntou a menina.– Por enquanto não. Diana tinha que retornar à arena. A competição àquela hora jádevia estar quase no fim e ela não queria ninguém se perguntandoonde ela havia se metido.– Está com fome? – acrescentou.A garota balançou a cabeça e respondeu:– Precisamos chamar a polícia e o resgate.– Impossível.– Eu não sei o que aconteceu – disse a garota, recomeçando atremer. – Jasmine e Ray estavam discutindo com o Dr. Ellis, então...– Houve alguma explosão. Eu vi lá da orla.– A culpa foi minha – lamentou a garota, aos prantos. – Eles morreram,e por minha causa.– Não – replicou Diana com delicadeza, sentindo uma onda depânico. – Foi a tempestade. – Pousou a mão no ombro da garota. –Qual é o seu nome?– Alia – respondeu a menina, apoiando a testa nos braços.– Alia, tenho que ir, mas...– Não! Não me deixe aqui.– Eu preciso. Eu... tenho que pedir ajuda.O que Diana precisava era retornar a Éfeso e descobrir um jeitode tirar a garota da ilha antes que alguém descobrisse. Alia agarrou-lheo braço e, mais uma vez, Diana se lembrou de como ela seagarrara àquele pedaço de casco.– Por favor, não demore. Talvez possam mandar um helicóptero.Pode haver sobreviventes.– Eu volto assim que puder – prometeu Diana e empurrou sualatinha para a garota. – Aqui tem pêssegos secos, sementes de noz--pili e um pouco de água fresca. Não beba tudo de uma vez.Alia pestanejou.– Tudo de uma vez? Quanto tempo você vai demorar?– Umas horas, talvez. Volto o mais rápido possível. Aqueça ocorpo e descanse. – Diana se levantou. – E não saia da caverna.Alia ergueu a cabeça e a encarou. Tinha os olhos castanho-escurose cílios fartos, o olhar temeroso, porém firme. Pela primeiravez desde que Diana a tirara da água, a garota parecia enxergá-la deverdade. – Onde estamos? Que lugar é este?Diana não soube o que responder, logo se limitou a dizer:– Esta é a minha casa.Então saiu da caverna antes que Alia pudesse fazer qualquer outrapergunta.  

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⏰ Last updated: May 11, 2018 ⏰

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