O Latido dos Cães de Caça

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Amanhecia mais um dia sem sol. A mesma coisa das últimas três semanas.

Eu não tinha dormido, nem nessa noite nem nas outras três ou quatro; acho que perdi até a noção do tempo. Passei toda a madrugada na poltrona antiga que um dia fora do meu avô. Ela cheira a mofo e a velhice. Mas nem isso me fazia sair dali, já que todas as quatro garrafas de uísque barato que tinha tomado já estavam ali do lado mesmo, na pequena mesa capenga e cheia de cupins vorazes que não se saciavam da madeira apodrecida.

A escuridão daquela sala abandonada aos poucos se dissipava, dando lugar ao cinza mórbido do novo dia miserável que nascia. Mal me mexia, com o pescoço duro, olhando sempre para o mesmo ponto escuro da parede descascada. Meus olhos estavam congelados, não piscavam, e pela minha mente somente passavam as assombrações. Quando finalmente aquele único ponto a qual observava ficou claro, consegui ver outra vez aquela maldita foto.

Posso dizer que éramos felizes. Ou não. Nunca soube. Lembro-me até hoje do dia que tiramos a foto. Éramos bastante jovens, animados com a vida. Mas aos poucos todos os nossos sonhos foram definhando e a verdade se mostrou tão crua que a vida se tornou um eterno funeral embalado por cânticos de réquiem.

Mais algum tempo remoí aquelas mazelas e misérias, sempre catatônico, sem reagir, deixando que aquele mar de lembranças sombrias percorresse os corredores empoeirados da memória. Mas de repente escuto os latidos dos cães de caça dos vizinhos; lá vão eles caçar de novo, aproveitando suas manhãs outonais livres. Aquele som me arrancou do limbo. Depois de muitas horas me mexi de novo. Os músculos doíam, minha cabeça pesava uma tonelada e minhas pernas demoraram uma eternidade para responder. Tentei me levantar, mas caí; não de volta na poltrona, mas no chão sujo. Fiquei estirado ali, como um cachorro vira-lata que definha de fome. Com muito esforço cego, tentei me erguer de novo. Consegui. Mas do caminho entre o chão frio até a altura do ar mal cheiroso, milhares de faces cruzaram com o meu olhar, me acusando, querendo me apedrejar e estampando em mim a culpa por tudo. Sussurros nos meus ouvidos, vindo de todos os lados. Sentia-me tão entorpecido que nada me afetava, não sentia nada, nem de bom nem de ruim, tudo apenas girava num caleidoscópio de alucinações.

Queria conseguir entender por que ela me contava tantas mentiras. Uma mentira sobre a outra. E com essa fixação doentia na cabeça dei alguns passos em direção à janela da sala. A luz, mesmo fraca e pálida, queimou meus olhos. E na bruma que se formou diante de mim, vi com clareza o seu rosto cínico, sorrindo alegre, com mais uma de suas mentiras.

Apoiei-me num dos lados da janela, respirei fundo. Um pouco da bruma se dissipou; resquícios mínimos de lucidez lampejaram por alguns instantes. Aos poucos a ardência dos olhos foi cedendo, e consegui olhar para fora, vislumbrando aquele cenário desolado. Dei-me conta que chuviscava; fraca, mas constantemente. Um véu cinza cobria o bosque de ciprestes pouco a frente da casa, e misturada naquela névoa espectral eu vi mais e mais rostos...

Os cães de caça continuavam a latir.

Minha cabeça pulsava, como uma bomba prestes a explodir. Boca seca, como se mastigasse areia, e apesar da leve melhora dos olhos, ainda via tudo embaçado e distorcido. Tentei me virar, e aos tropeções dei alguns passos, entorpecidos, bêbados, que derrubavam coisas por todos os cantos. Tentava seguir o caminho da luz que estava acesa no banheiro. Consegui chegar nele. O fedor não incomodava, nem o sentia para falar a verdade. A luz fraca e pálida da lâmpada que balançava como um pêndulo dava aquele recinto imundo um ar fantasmagórico, repleto de espectros inquietos, sussurrantes e que me apontavam seus dedos imaginários enchendo-me de acusações e clamando minha morte.

Os latidos dos cães ainda ecoavam, sem parar, assim como o barulho dos cascos dos cavalos dos caçadores indo atrás do sangue de algum animal. Agora estava eu apoiado na pia repleta de vômito, mirando um olhar embaçado de tantas alucinações para o chão ladrilhado cheio de sujeira e decrepitamente velho. Arfava com muita força, como se o ar fugisse de mim. Olhei no espelho quebrado. O que vi era qualquer coisa menos um ser humano. Uma figura descarnada, de pele amarela, barba crespa e cheia de nós, olhos mortos perdidos em um horizonte de mentiras.

O Latido dos Cães de CaçaWhere stories live. Discover now