Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesadosde sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens quepasseavam pelo céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo,embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no rosto. Arregalou osolhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu nariz. 

 Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça eguarda-chuva na mão — a maior das galantezas! O peixinho olhava para o nariz deNarizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê. 

 A menina reteve o fôlego de medo de o assustar, assim ficando até que sentiucócegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era um besouro que pousara ali. Masum besouro também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengala. 

 Lúcia imobilizou-se ainda mais, tão interessada estava achando aquilo. 

 Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapéu, respeitosamente. 

 — Muito boas tardes, senhor príncipe! — disse ele.— Viva, mestre Cascudo! — foi a resposta.— Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, príncipe?— É que lasquei duas escamas do filé e o doutor Caramujo me receitou aresdo campo. Vim tomar o remédio neste prado que é muito meu conhecido, masencontrei cá este morro que me parece estranho — e o príncipe bateu com a biqueirado guarda-chuva na ponta do nariz de Narizinho e disse:

  — Creio que é de mármore — observou.Os besouros são muito entendidos em questões de terra, pois vivem a cavarburacos. Mesmo assim aquele besourinho de sobrecasaca não foi capaz de adivinharque qualidade de "terra" era aquela. Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico,examinou o nariz de Narizinho e disse:

  — Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão. 

 — Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura — volveu opríncipe.O besouro provou a tal terra com a ponta da língua. 

 — Muito salgada para ser rapadura. Parece antes... 

 Mas não concluiu, porque o príncipe o havia largado para ir examinar assobrancelhas. 

  — Serão barbatanas, mestre Cascudo? Venha ver. Por que não leva algumaspara os seus meninos brincarem de chicote? 

 O besouro gostou da idéia e veio colher as barbatanas. Cada fio que arrancavaera uma dorzinha aguda que a menina sentia — e bem vontade teve ela de o espantardali com uma careta! Mas tudo suportou, curiosa de ver em que daria aquilo.Deixando o besouro às voltas com as barbatanas, o peixinho foi examinar asventas. 

 — Que belas tocas para uma família de besouros! — exclamou. 

 — Por que não se muda para aqui, mestre Cascudo? Sua esposa havia degostar desta repartição de cômodos.O besouro, com o feixe de barbatanas debaixo do braço, lá foi examinar astocas. Mediu a altura com a bengala. 

 — Realmente, são ótimas — disse ele. — Só receio que more aqui dentroalguma fera peluda.

  E para certificar-se cutucou bem lá no fundo. 

 — Hu! Hu! Sai fora, bicho imundo!...Não saiu fera nenhuma, mas como a bengala fizesse cócegas no nariz deLúcia, o que saiu foi um formidável espirro — Atchim!... e os dois bichinhos,pegados de surpresa, reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo nochão.

  — Eu não disse? — exclamou o besouro, levantando-se e escovando com amanga a cartolinha suja de terra. — É, sim, ninho de fera, e de fera espirradeira!Vou-me embora. Não quero negócios com essa gente. Até logo, príncipe! Façovotos para que sare e seja muito feliz.

  E lá se foi, zumbindo que nem um avião. O peixinho, porém, que era muitovalente, permaneceu firme, cada vez mais intrigado com a tal montanha queespirrava. Por fim a menina teve dó dele e resolveu esclarecer todo o mistério.Sentou-se de súbito e disse: 

 — Não sou montanha nenhuma, peixinho. Sou Lúcia, a menina que todos osdias vem dar comida a vocês. Não me reconhece?— Era impossível reconhecê-la, menina. Vista de dentro d'água parece muitodiferente... 

 — Posso parecer, mas garanto que sou a mesma. Esta senhora aqui é a minhaamiga Emília.O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguida apresentou-secomo o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Claras. 

 — Príncipe e rei ao mesmo tempo! — exclamou a menina batendo palmas. —Que bom, que bom, que bom! Sempre tive vontade de conhecer um príncipe-rei. 

 Conversaram longo tempo, e por fim o príncipe convidou-a para uma visitaao seu reino. Narizinho ficou no maior dos assanhamentos.— Pois vamos e já — gritou — antes que tia Nastácia me chame. 

 E lá se foram os dois de braços dados, como velhos amigos. A boneca seguiaatrás sem dizer palavra.— Parece que dona Emília está emburrada — observou o príncipe. — Não é burro, não, príncipe. A pobre é muda de nascença. Ando à procurade um bom doutor que a cure.— Há um excelente na corte, o célebre doutor Caramujo. Emprega umaspílulas que curam todas as doenças, menos a gosma dele. Tenho a certeza de que odoutor Caramujo põe a senhora Emília a falar pelos cotovelos. 

 E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando chegarama certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha! Apaisagem estava outra.— É aqui a entrada do meu reino — disse o príncipe. Narizinho espiou, commedo de entrar.

  — Muito escura, príncipe. Emília é uma grande medrosa.A resposta do peixinho foi tirar do bolso um vaga-lume de cabo de arame,que lhe servia de lanterna viva. A gruta clareou até longe e a "boneca" perdeu omedo. Entraram.Pelo caminho foram saudados com grandes marcas de respeito, por váriascorujas e numerosíssimos morcegos.

  Minutos depois chegavam ao portão do reino.A menina abriu a boca, admirada.— Quem construiu este maravilhoso portão de coral, príncipe?É tão bonito que até parece um sonho.

  — Foram os Pólipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansáveis do mar.Também meu palácio foi construído por eles, todo de coral rosa e branco. 

 Narizinho ainda estava de boca aberta quando o príncipe notou que o portãonão fora fechado naquele dia.— É a segunda vez que isto acontece — observou ele com cara feia. —Aposto que o guarda está dormindo.

  Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sono roncado. Esseguarda não passava dum sapão muito feio, que tinha o posto de major no exércitomarinho. Major Agarra-e-não-larga-mais.Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, de lança empunho, capacete na cabeça e a espada à cinta, sapeando a entrada do palácio. 

 OMajor, porém, tinha o vício de dormir fora de horas, e pela segunda vez foraapanhado em falta.O príncipe ajeitou-se para acordá-lo com um pontapé na barriga, mas amenina interveio. 

 — Espere príncipe! Eu tenho uma idéia muito boa. Vamos vestir este sapo demulher, para ver a cara dele quando acordar.E sem esperar resposta, foi tirando a saia da Emília e vestindo-a, muitodevagarinho, no dorminhoco. Pôs-lhe também a touca da boneca em lugar docapacete, e o guarda-chuva do príncipe em lugar de lança. Depois o deixou assimtransformado numa perfeita velha coroca, disse ao príncipe: 

 — Pode chutar agora.O príncipe, zás!... pregou-lhe um valente pontapé na barriga.— Hum!...— gemeu o sapo, abrindo os olhos, ainda cego de sono.O príncipe engrossou a voz e ralhou:

  — Bela coisa. Major! Dormindo como um porco e ainda por cima vestido develha coroca... Que significa isto?

  O sapo, sem compreender coisa nenhuma, mirou-se apatetadamente numespelho que havia por ali. E botou a culpa no pobre espelho.— É mentira dele, príncipe! Não acredite. Nunca fui assim...

  — Você de fato nunca foi assim — explicou Narizinho. — Mas, comodormiu escandalosamente durante o serviço, a fada do sono o virou em velha coroca.Bem feito...— E por castigo — ajuntou o príncipe — está condenado a engolir cempedrinhas redondas, em vez das cem moscas do nosso trato. 

 O triste sapo derrubou um grande beiço, indo, muito jururu, encorujar-se aum canto. 

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⏰ Last updated: Mar 26, 2018 ⏰

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