Capítulo 21 (FINAL) - Não me TOQUE

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Se era bom com mentiras?
Não até ter sido obrigado a ser — pois ao contrário, o que aconteceria?

Não queria morrer. Não queria morrer. Não queria morrer. Foi por não querer morrer que acabou morrendo.

Morrendo por dentro.

Agora, sabia que sua forma de vida era doentia, por assim dizer, não a considerava exótica, porque não a considerava uma vida. Pelo contrário, imaginava que o mundo era um lugar que não conhecia e nunca iria conhecer se permanecesse vivendo como vivia. Se chegasse em casa e seus pensamentos fossem sobre trocar os sapatos na entrada, para garantir que não entre sujeira, tirar as roupas e ficar apenas de cueca — a única parte da sua vestimenta que ainda estaria fora do contato do mundo exterior — e, em seguida, vestir outra roupa perfeitamente alinhada, arrumada e organizada. Não viveria enquanto estivesse organizando os preparativos para que pudesse viver.

Não gostava de coisas desengonçadas, não gostava de bagunça, não gostava de muitas coisas, principalmente, dele mesmo. Não gostava de não suportar essas coisas como todos os outros suportavam.

Não suportava trocar as luvas, viver entre tecidos e materiais descartáveis, entre lavagens e secagens frequentes, sem nunca ter tempo para pensar em si. Não suportava não poder varrer sua mente tal qual fazia com sua casa, espanar ao máximo que seus pulsos permitiam aqueles pensamentos e só depois verificar se estava realmente limpo — limpo da obsessão por limpeza.

Vivia em uma rotina exaustiva e que nunca valeu a pena.

Toda sua prisão era branca, não havia espaços para cores em sua vida, não as que poderiam esconder sujeira. Observava a perfeita harmonia de tons da sua residência e organizava tudo por ordem alfabética, depois, ajeitava os vasos em cima da mesa para que eles estivessem milimetricamente no lugar, com a esperança de que organizando aquelas coisas, organizasse também seus pensamentos.

Que esperança tola.

Somente depois de todo o tempo submerso em compulsões e automutilações quase que diárias, se deu ao luxo de tirar as luvas, queria suspirar que finalmente sua casa estava limpa — finalmente existia um recanto em que podia sentir as coisas e tocá-las sem medo. Mas seria mentira, estava decidido a não mentir dessa vez. A não colocar as luvas novamente — luvas novas, claro — e abrir mais uma porta para que os transtornos voltassem a gritar. Passou em seu corpo inteiro o medo do que aconteceria quando entrasse na sala do consultório, podia sentir sua pele queimar, os gritos e ameaças que não pararam quando as lágrimas invadiram seus olhos, querendo limpar.

Os gritos e ameaças que diziam que nunca iriam parar, a não ser que ele parasse — porque o moreno iria parar, quem pensava que era para ousar desistir? Quem pensava que seria se corresse riscos? Não estava óbvio que depois de tanto tempo evitando contato a sua imunidade iria destruí-lo? Matá-lo? Não estava óbvio que se não saísse da porta daquele consultório tudo pelo qual lutou, tudo que fez, tudo que era, tudo iria morrer? Ele iria morrer!

Não queria morrer.

Só que, por mais que sua mente recusasse entender, sentia que já não estava vivo. Não era mais quem foi. Como podia permanecer no mesmo corpo, com o mesmo nome e, ao mesmo tempo, não ser a mesma pessoa?

Detestava a necessidade constante de se sentir limpo, de achar que essa era a única maneira de ficar em paz. Odiava as garrafas de cândida compradas em supermercado, os bochechos, as lavagens, as três à cinco vezes por semana que fazia isso. Odiava passar água depois e sentir cada parte do seu corpo carbonizar e ser corroída, mesmo que psicologicamente.

Independentemente de ser psicológica ou física, aquela dor ainda era a sua dor.

Se sorrisse agora em frente ao espelho, sentiria sua boca queimar, em troca, veria os dentes sempre brancos. Lindos, reluzentes. Beleza em troca de sua alma. Calma em troca de passar água sanitária por cima da pele, sentindo-a arder antes mesmo do líquido trocar, sem se importar com as consequências, focando apenas em precisar ficar limpo. Limpeza era fundamental para a humanidade, repetia.

Mas e para si mesmo? O que era fundamental?

Era a limpeza ou era as marés calmas após uma tempestade de ansiedade?

Ao deixar que a água e o sabonete retirassem o cheiro impregnado em sua pele, ou da sua essência, era capaz de retirá-lo de seus pensamentos?

Ao sair do banho — ou da segurança —, trocava seu eu por uma personalidade qualquer. Sua mente estava sempre em chamas, exigindo constantemente ser apagado com doses e mais doses de água, deveria poder reclamar daquilo. Qualquer pessoa deveria poder reclamar de uma vida que já não suportava. Estava limpo, mas seria isso tudo que o rapaz fazia questão? Estava limpo, a que preço? Observava seu corpo, as marcas das queimaduras que somente o dono delas poderia enxergar, que escondia com uma personalidade debochada, prepotente, nojenta. Para manter as marcas da busca constante pela limpeza, acobertava-se com uma personalidade suja.

Suas coxas poderiam ser pequenas, finas, afinal, era modelo — não poderia engordar — e seu cabelo meio escuro.

Seu rosto poderia ser bem marcado, com traços fortes, e podia existir os olhos verdes e apaixonantes que diziam não importar tanto quanto comparado ao que o fazia se destacar: seu sorriso.

Branco.
Alinhado.
Perfeito.

Ao observar a características que tanto elogiavam, sentia nojo. Desejava correr ao banheiro e vomitar, desejava deixar-se partir, sangrar, cair, afinal, que problema tinha? Estava sempre à beira de uma queda, segurando-se nas paredes para permanecer em pé, de toda forma. Estava sempre deixando seu corpo escorrer, enquanto sentia o cheiro forte do medo — e de seu entojo — escapar da sua consciência. Novamente, a sensação de sujeira o dominou, precisava sair daquele ambiente repleto de pessoas, seu cérebro o alertava, porém se controlou. Odiava sujeira, mas odiava ainda mais saber que existia tanto ódio de si dentro dele.

Relembrou-se do dia que saiu de um consultório semelhante aquele, a forma como escovou os dentes, um por um, com creme dental e sentiu a pasta arder por conta do que o líquido corrosivo havia causado — havia permitido que causasse — e como respirou fundo, não se dando ao luxo de chorar, visto que as palavras que seu pai o disse uma vez ainda ressoavam. Homens não choram, se apegou aquilo, sem nunca se preocupar de fato se foi direcionado a ele ou apenas uma repetição dissimulada para que o mais velho evitasse demonstrar sofrimento. Sem nunca se preocupar com o que verdadeiramente pensava. Seu pai estava morto, faleceu de câncer e lhe deixou toda a fortuna que possuía, por que insistia em se apegar ao que pensava enquanto vivo, ao invés de se segurar no desejo do velho de que seu filho — ele — ficasse bem?

Ainda recorda do cronômetro no celular — os mesmos quarenta minutos que demorou para chegar do lugar que estava até a clínica — girando os números, da sua mão cansando, dele percebendo que seria melhor dormir um pouco, por não aguentar mais enxergar sujeira no rosto que tinha certeza que tinha limpado bem anteriormente.

Caso tivesse o poder de voltar no tempo, teria informado que tudo que desejava agora era poder dormir quando tivesse a certeza que algo estava limpo. Parece que quando se está bem, você esquece de como era quando ficou mal — ou, talvez, tenha piorado tanto nos últimos seis meses, que todos os traços anteriores ao momento atual parecessem melhores.

Sua vida havia sido solitária, nunca se deixando aproveitar os momentos que valiam a pena, não se deixando ver as pessoas que estavam ao seu redor. Colocando em sua boca o que os intrusos mandassem e engolindo sem pestanejar, depois disso, esperava que os feitos fizessem efeitos. Acreditava que só com eles para sua mente se calar e a sujeira dos locais darem lugares a bons sonhos — e dormia pelos cantos, como se fosse criança, enquanto aqueles transtornos esfriavam seu corpo.

A médica apareceu na porta.

Ele quase foi capaz de sentir o olhar direcionado a suas mãos e um sorriso complacente que surgiu no rosto da mulher de jaleco — que apesar de desconhecida, parecia compreender sua situação.

— Adams Sales? — pronunciou, esperando que se levantasse.

E assim fez.

Em sua realidade, o pai não poderia o parabenizar por seu esforço, a mãe nunca retornaria e toda sua família estava fragmentada, dividida entre memórias antigas e ódios presentes, tudo era diferente dos sonhos.

Mas, mesmo com tudo isso, desejava encontrar a mesma paz que sempre encontrava em seus sonhos, só que dessa vez, em sua vida real.

Não me TOC [COMPLETO]Where stories live. Discover now