Prólogo

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Meu apartamento no Brooklyn ainda cheira a madeira velha e lavanda. Como sempre cheirou. Muito de mim estava e estaria para sempre impregnado naquele cubículo. Foram meses comendo o cachorro quente da esquina e escrevendo rascunhos e mais rascunhos onde eu pudesse registrar o turbilhão de sentimentos que me consumia.

Tudo estava igual, mas ao mesmo tempo era como se muitas coisas tivessem mudado. Muito mais do que gostaria, aliás.

Lorelai havia implorado para que eu voltasse a Siena - disse que o grêmio precisava de mim.
Relutei o máximo que pude tentando encontrar outras soluções, mas acabei cedendo como sempre. Nunca consegui dizer não a minha irmã então minha passagem para o Brasil já estava em mãos.

Olho mais uma vez ao redor, gravando cada detalhe em minha memória porque, mesmo que as sensações sejam dolorosas, é difícil dizer adeus.
Acho que isso pode se encaixar em uma infinidade de coisas.

Tenho quase certeza de que dessa vez posso não voltar, mas tento não pensar muito sobre isso. Observo os livros velhos e o sofá-cama embaixo da janela. Os discos de vinil e os potes de moedas.

Pego meu casaco, as chaves, e desço.

Cumprimento Charles, o senhor do andar de baixo, e sigo. Minha relação com Charles nunca passou disso: um aceno ou, com sorte, um bom dia. Já havia escrito sobre ele durante muitas noites. Vivia de pantufas e roupão, pegando seu jornal todas as manhãs com uma xícara de chá preto na mão. Porém, e sendo assim uma das coisas que mais me fazia querer escrevê-lo, vestia um belo terno todas as sextas e ia para o terraço. Lá, se sentava num banco improvisado e observava as estrelas, como se esperasse alguém. Alguém que nunca aparecia.
Mesmo assim, toda semana, com um olhar sereno e um sorriso discreto, lá estava ele.
Às vezes eu sentia como se nossa troca de acenos e bom dia fosse tão importante quanto qualquer outra coisa que eu devesse fazer para me sentir melhor. Até mais.

Olho para sua porta mais uma vez e vejo que ele já voltou para dentro. Hoje é quinta.

Chegando ao aeroporto recebo uma mensagem de Lorelai que ignoro, sabendo que ela vai me ligar logo mais de qualquer jeito. E é exatamente o que acontece.

- Tomas?

- Desde 1994.

- Por que você nunca pode responder uma pergunta como uma pessoa normal?

- Força do hábito. - Digo sorrindo, um ato que logo reprimo me lembrando que ela não pode me ver.

- Onde você está? - Ela insiste, como se ir de Nova Iorque para o Brasil fosse algo que durasse dez minutos.
Suspiro.

- No aeroporto. Não se preocupe Lory, logo estarei aí, então você vai poder contar ao seu querido irmão o porquê de a presença dele ser tão importante para o grêmio tão de repente.

- Seu grêmio, Tomy. E eu já disse que sua presença sempre foi importante para nós. Você se esquece de que foi você, irmãozinho, que largou tudo por...

Lorelai deixa a frase suspensa no ar. Ouço sua respiração do outro lado da linha se tornar mais pesada. Ela sabe que cutucou uma ferida.

- Já disse que vim para Nova Iorque para estudar mais. Sabe que qualquer lugar pode oferecer mais do que Siena.

- Claro...bom...me ligue quando chegar, vou te buscar.

E então ela desliga. Sem se despedir.

Ter uma irmã como Lorelai é uma tarefa um tanto difícil. E confusa. Tão confusa quanto o apego dela por aquela cidade.

Quando éramos crianças prometi que a protegeria de tudo, e que jamais deixaria que alguém a machucasse. Quando ela se envolveu com um cara que a agredia verbal e fisicamente, segui ele uma noite e o espanquei. Não me orgulho disso e sei que desfigurei aquele rosto, mas estava fora de mim.
Naquela época as coisas costumavam sair do controle pra mim.
E então Lorelai foi se afastando – sentia medo de mim, medo por mim -, e mesmo que tivéssemos concordado em deixar isso no passado vez ou outra ela deixa transparecer um receio ao me olhar.

Minha irmã me conhece melhor do que ninguém mas sei que sua confiança em mim muitas vezes vacila. Como quando diz que voltei para Nova Iorque apenas porque estava vidrado demais em Natalie – acho que eu poderia dizer, com a propriedade de quem vivenciou tudo, que a palavra certa seria apaixonado. Não teria doído tanto se eu estivesse simplesmente vidrado. Lory dizia, e quando nos falamos por telefone ainda diz, que abandonei o grêmio sem me importar com as consequências. Nunca desejei mal ao grêmio, eu o fundei e eu o liderei durante muito tempo. Mas aquilo não era para mim. Eu queria mais. E não há nada de errado em querer mais, certo?

Não pensei direito. Eu já pensava demais o tempo todo e quis arriscar.
Eu estava apaixonado por Natalie, e pelas poesias do mundo a fora. Mas agora os poucos pedaços que faziam sentido na minha vida se perderam ou se quebraram – não sei qual metáfora melancólica soa melhor.

Só sei que estou perdido porque além de ter despencado na dura realidade não sei dar o próximo passo. Não sei continuar, mas de alguma forma continuo.

Todos os dias.

Poeta Das Manhãs [reescrevendo]Where stories live. Discover now