Festival de Lobos

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Janaína tinha olhos pretinhos feitos jabuticaba, cabelos cacheados, voz rouca. Era sonhadora, como a maioria é. Não se entendia muito, como a maioria não se entende, mesmo fingindo saber muito da vida. Mas de uma coisa ela sabia: amava viajar, amava música, queria se libertar da vida que tinha e fazer algo que mudasse tudo, algo que a mudasse. Desejava algo que pudesse usar como uma borracha em todos os acontecimentos ruins que eram como espinhos em sua vida, queria ser uma fugitiva da própria história, do passado. Se pudesse mudaria o nome, o rosto, os números que a configurava parte da população. Mas ela não queria entender que não da pra reiniciar a alma, mesmo que pudesse fazer isso com seu físico.

Ela deitou sobre a gramínea e olhou para o céu, fechou os olhos e imaginou as estrelas acima das nuvens, do nublado, da poeira. Uma lágrima escorreu do olho direito e caiu pela face até se abraçar a grama seca. Ela não sabia a quem perguntar. Deus, deuses, deusa?

— Quem é tão cruel a escrever esse livro, essa droga de livro que é minha vida? Quem seria tão cruel a ter coragem de transcrever a morte da Brisa? Da minha pequena Brisa? A gente nem sempre chora pelas pessoas que morrem, não pelos protagonistas, não pelo namorado da protagonista, em muitos momentos ninguém se importa com quem está ali pra preencher espaços. Mas sempre choramos quando o cachorro morre, o gato, ou droga, até pelo pássaro. — o pensamento corria pela mente como facas, ela abriu os olhos e o céu só era cinzas, e sentiu cair a resposta na sua face — é a mesma pessoa que escreve um céu cinza e doente durante meu luto.

Ela fechou os olhos mais uma vez imaginando a loucura naquele diálogo consigo mesma, e o que falariam se encontrassem ela ali chorando silenciosamente. O mato incomodando a pele, e fazendo junto ao cabelo um abraço. De repente uma gota cai do céu sobre o rosto, ela passa a mão desacreditada que era a chuva quem vinha, deixando as palavras saírem da mente para os lábios em som alto:

— Nessa página não poderia faltar uma droga de chuva dramática. D-E-U-S-A, não estou em um romance! — e no meio da dor e das lágrimas, com gosto salgado nos lábios, riu da própria loucura.

Noutro dia, Janaína acordou com o corpo dolorido depois de ter adormecido ao relento. O pescoço duro por ter feito a mochila de travesseiro, e a pele marcada da grama. Levantou rapidamente e se esticou, depois bateu com as mãos a grama da calça, pegou a mochila, e se viu a Dona Solidão, sem rumo, sem pra onde voltar. Lembrou-se de todas as vezes que quis estar assim, como estava agora. Sentiu-se péssima e livre. Duas coisas quase que opostas — A liberdade é uma dona chata que te joga água gelada por bater na porta dela. — pensou. Ela sentou-se na rodoviária da cidade, olhando as pessoas irem e virem, sem saber em qual ônibus entrar. Depois levantou, andou pela cafeteria do restaurante, pediu um café, passou os olhos pelas lojinhas procurando por algo que não sabia o que era. Parou na frente de um mural que estava pregado na parede ao lado do guichê de uma companhia de ônibus. No mural havia pregado vários cartazes, informações gerais e eventos. Também havia destinos, pacotes e em especial, bem no canto esquerdo, um pedaço pequeno de papel dizendo "Festival de Lobos".

Os olhos de Janaína se estreitaram, parecia que aquele pedacinho de papel estava ali só por causa dela. No papel constava local, hora, e como chegar ao festival, além de pontos de parada para os mochileiros. Seriam quase duas semanas de viagem, com as paradas, se fosse com calma, e era o que mais tinha naquele momento: calma. Finalmente poderia ter calma para realizar algo seu. O Festival se iniciaria no fim de semana próximo e duraria dois dias. Não era um trajeto comum, não era para viajantes comuns, era para desviantes, como ela.

Janaína comprou uma passagem até o próximo ponto, tirou o pequeno papel do mural e ficou olhando para ele por minutos até que sua hora de seguir chegasse. Entrou no ônibus deixando sentado naquele banco de rodoviária, todo seu passado. - Adeus, adeus. – Pensou. – Até nunca mais, espero. – Suspirou profundamente, com um vazio no estômago, um frio no peito. Sentou na poltrona da janela e observou a paisagem por um tempo até suas pálpebras pesarem e ela adormecer.

Ela acordou algumas horas depois com o motorista encostando a prancheta no braço dela, "Moça, chegamos". Os cílios pareciam grudados, abriu os olhos com muita dificuldade, pediu desculpas ao motorista, sabe-se lá pelo que, pegou a mochila debaixo dos pés e saiu do ônibus. Não havia mais ninguém ali por perto, tirou o papel do bolso da mochila, a primeira parada "Poço da Esmeralda". Estava totalmente perdida, não conseguia imaginar como chegaria lá, não havia pensado em nada, não tinha nada planejado.

— Oi.

Janaína acordou do transe e dos pensamentos longínquos, se assustou por não ter percebido que alguém estava ali do seu lado, não se lembrava de ter sentado do lado de ninguém, ao menos não havia reparado. — Oi. — Respondeu timidamente.

— Pra onde você está indo ? — A garota tinha aparentemente a mesma idade de Janaína, tinha os olhos mel, o cabelo curto, como se houvesse raspado e os fios tivessem crescido há poucos meses. Estava com uma mochila cheia de bottons, trecos, costuras. Anéis de todo tipo nos dedos.

— Hum, estou seguindo isso aqui. — Mostrou o papel do festival para a garota.

— Eu sou Maria. — Ela sorriu, tirou algo da mochila e entregou para Janaína. — E você?

— Eu? Ham, Janaína. — Enquanto falava deslizava os olhos pelo papel que Maria entregou pra ela.

— Está vendo? — Maria colocou o dedo sobre o papel. — Estamos indo para o mesmo lugar. — E sorriu.

— Como chegaremos aqui? — Janaína puxou um dos seus cachos, uma mania antiga que ela tinha para quando ficava ansiosa.

— Eu tenho uns amigos que vão de kombi até lá, quer ir com a gente?

— Seria ótimo! — Mal pode se conter dentro do próprio corpo.

A Kombi chegou em menos de vinte minutos, quase que lotada de gente de todo tipo. Tinha um girassol enorme desenhado na porta, e quando Janaína entrou parecia maior por dentro, do que por fora.

— O que você sabe sobre esse festival? — Janaína arriscou puxar assunto com Maria, que estava do seu lado direito, logo no primeiro banco.

— Eu sei que ele existe há uns seis anos, ham... E também sei que eu vou há dois anos para lá. Também sei que existem muitas teorias sobre o nome da ilha.

— Ilha?— Um pequeno ar de medo subiu como gelo pela garganta.

— Sim, é uma ilhazinha, não sabia? Ilha Lobos, ou dos lobos, ou ainda de lobos... Não sei ao certo.

— Não li direito o panfleto, não vi mencionando nada sobre ser uma ilha.

— Não se preocupe, não é nada de mais. Uma das histórias mais conhecidas dizem que um navegador usava lobos para caça em varias ilhazinhas que tinha ali perto, e alguns deles se perderam nessa ilha, outros dizem que o barco dele naufragou e o caçador morreu afogado enquanto os lobos se abrigaram lá... Mas não acredito muito nessa história.

— Que tipo de lobos?

— Guará, é a única espécie que temos por aqui. Mas eles não me parecem muito domesticáveis. Você já viu algum?

— Não, nunca vi. — Janaína ficou com o pensamento distante, imaginando todas as histórias que deveriam existir a cerca de cada canto do mundo, e sentiu uma pontinha de curiosidade, um desejo profundo de querer saber a realidade por trás de tudo.

Um silêncio pairou no ar, mas só entre as duas garotas. Alguns dos ocupantes da Kombi cantarolavam músicas aleatórias, outros gritavam para cada alma que passava indo e vindo na estrada. Era uma algazarra total. Janaína recebia todo aquele barulho como uma expressão máxima da sua felicidade e do abandono do passado. Era como se algo dentro dela é que gritasse e cantasse.

— Oi, olha lá, chegamos Jana! — Maria cutucou o braço de Janaína, empolgada em ver toda a gente no local.

— Jana? Gostei... Uau, como aqui é lindo. — Ela colocou a cabeça para fora da janela, encantada com o tudo que via.

Instantâneo ⚢Where stories live. Discover now