01. O pipoqueiro

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Arthur

Eu sentia a iminente chegada deste momento. Mesmo assim,sempre fingia que não. Enquanto tudo desabava, enquanto tudo se dilacerava diante dos meus olhos, eu ria. Ria como quem sabe o que está fazendo. E bem, eu não sei. Agora, por culpa minha, o maldito dia chegou.

Apesar de bem saber do meu infame destino, nada foi planejado. Imaginei este dia tantas vezes... Mas é claro, tudo foi diferente e consideravelmente mais doloroso, desde os mínimos detalhes.

Na minha imaginação eu estaria com um sobretudo preto, que daria graça aos meus passos enquanto uma chuva fina me cobriria com atmosfera melancólica, tornando possível a minha nobre e profunda reflexão pelas avenidas desertas... E é claro, haveria um narrador, trilha sonora e tudo o mais.

Na vida real, tudo era colorido, perfumado, radiante... tão diferente de meus devaneios afrescalhados. Era de uma alegria frustrante.

A minha sombra se mostrou claramente irritada com as outras sombras felizes que lotavam a calçada naquele domingo primaveril.

Caminhava a passos firmes até o meu condomínio, um conjunto de prédios cinzentos totalmente desprovidos de piscina ou graça. A caminhada até lá era de poucos minutos, mas me pareciam eras. O modo como você se sente distorce o tempo, é o que dizem. Deve ser por isso que a minha semana é tão confusa.

Meu andar pela calçada de pedra estava mais próximo de um arrastar do que de um caminhar decente. Ultimamente tudo tem acontecido diante dos meus olhos como um quase sonho,estando eu entorpecido demais para tomar uma decisão sensata.

Frases desconexas surgem em minha mente e eu até me espanto com o teor ou a falta de sentido delas. O sol poente me cega e quase me machuca, inexplicavelmente. Meu olho esquerdo treme.

Ao chegar no hall de entrada, sorri internamente, pois faltava muito pouco para chegar em casa. Mas essa alegria logo se dissipou quando me deparei com Wilson, o porteiro que está sempre por dentro dos acontecimentos mundiais: quando não está lendo os meus jornais, está a fazer indagações.

O homem inconveniente reparou na minha cara de poucos amigos e perguntou, com a simpatia irritante das pessoas com quem sou obrigado a dividir o mundo:

-Que te aconteceu, amigo? Perdeu dinheiro ou namorada?
-Namorada...- respondi, tentando parecer OK, mas creio que minha voz rouca só fez com que eu parecesse mais afetado.

O porteiro pegou um grosso maço de papéis. -Se quiser que eu entregue as contas amanhã, amigo, é só dizer.- riu ele,dando tapinhas no meu ombro.

As pessoas não fazem ideia de quanto as risadas soam como insultos pra mim.

                                                                                    ✥  
Acordo dez  da manhã e tenho alguns segundos de completa ignorância sobre os acontecimentos do dia anterior. Esses segundos inocentes que se tem ao acordar são os segundos mais felizes dos meus dias.

Ao chegar no sexto segundo,porém, eu caio na cama novamente, tentando absorver a pancada de realidade: terminei com Lidia!

Pelo menos desta vez, eu tive uma noite de sono. As dezessete anteriores não puderem se dar a este luxo, rendendo assim ataques frequentes de estresse, neurose e ideias - quase todas muito ruins-.

Quando me dei conta de tudo, fiquei encarando a parede azul e me perguntando "por quê?". Tudo aquilo realmente aconteceu, eu sei de cor as palavras exatas que usei, assim como estão cravadas em minha mente aquelas que deixei de usar. Me arrependo,mas tento acalmar-me usando a desculpa da "experiência adquirida", que nunca funcionou de verdade.

Escala de TempoWhere stories live. Discover now