A Breve Noite da Menina de Cabelos Coloridos

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Finalmente, chegou o momento de revelar a outra pessoa, a outra habitante da rua deserta aonde se chega ao clímax da história: Ártemis; e, com isto, espero deixar claro ao leitor mais crédulo que não me refiro à deusa grega, mas a visão praticamente análoga projetada diante de mim. Suas formas remetiam, ao menos para meu olhar inebriado, à personagem mitológica citada. O corpo transmitia vigor, uma energia inexprimível por meras palavras (acredito, inclusive, que qualquer sentido falharia em apreender tal emanação); o rosto possuía um volume meticulosamente calculado em relação ao corpo; distribuía, de forma harmoniosa, cada um dos elementos que compunham a face graciosa. Porém, havia um aspecto crucial, responsável por elevar aquela figura recostada na porta a um novo grau de beleza: os cabelos. Eram de um azul espacial, sem gravidade, onde o infinito se estende por tudo; suscitava um enorme desejo de mergulhar e jamais sair daquele emaranhado de fios; o comprimento mal chegava aos ombros, ficando suspenso na metade da nuca. Custava-me acreditar que sua cor era artificial, ao invés de ter nascido espontaneamente ali. Se houve uma fabricação humana, nada me convencerá o contrário do seguinte: aquela tonalidade específica de azul foi produzida especialmente para esta moça tingir suas madeixas.

Após me perder em alguns minutos de contemplação, percebi que meu trajeto estava concluído. Tentei me mover sem sucesso. Meu corpo permanecia inerte, recusava-se a desviar os olhos da escultura presente. Minha estação passou; resolvi deitar um olhar ainda mais minucioso à menina. Notei algo estranho: sua expressão denotava uma grande tristeza, parecia agonizar num sofrimento infindo. Primeiro, imaginei que sofria de mal físico, hipótese logo descartado quando reparei na normalidade do restante de seu corpo. Nenhum músculo contorcendo-se ou posição incomum. Somente o semblante carregava um doloroso pesar. Na verdade, na altura que chegamos à última parada, mal podia conter as lágrimas, de modo que estas ameaçavam um suicídio em massa, tão logo surgisse uma oportunidade privada.

As portas se abriram e todos foram forçados a descer, inclusive eu, que nunca estive lá antes. Pisei na plataforma, desnorteado pela situação, mas me recompus rapidamente, ao avistar a menina dos olhos tristes dirigindo-se com passos apressados para a saída. Acredito que sempre fui uma pessoa ponderada, amante do raciocínio cuidadoso antes de qualquer decisão; naquele momento, abandonei minha natureza e me coloquei em seu encalço, tentando segui-la de maneira casual.

Saímos para o abafado ar noturno, típico do verão carioca; a despeito disso, uma suave brisa soprava forte o bastante para esvoaçar ligeiramente os cabelos encantados, que me atraíam e puxavam como a um imã. Eu nunca havia posto meus pés naquele bairro; desconhecia aquelas ruas, aquelas casas, aqueles ônibus; enfim, tudo no raio de meu olhar desenhava-se como um novo e desagradável cenário. Mas permaneci fiel na minha empreitada de segui-la.

Depois de andar por uma eternidade – exageros à parte, haviam se passado apenas 15 minutos – percebi que ela ou estava perdida ou caminhava a esmo. Ambas as opções complicariam o retorno para casa, pois já não sabia me localizar naquele labirinto no qual me atirei. Mesmo assim, meu fascínio e, mais ainda, minha curiosidade foram atiçados a níveis onde eu já substituíra a razão por mero instinto como guia. Naquele momento, tudo que eu enxergava eram os cabelos flutuando ao sabor do vento.

Finalmente, retornamos ao lugar do início da narrativa: a famigerada rua deserta. A moça agarrou-se a um poste, como se fosse sua única posse na Terra, e ficou assim por alguns instantes, nos quais parei a cerca de 30 metros para observar. De costas para mim, ela escondia seu rosto de meu olhar ávido por conhecimento. Senti um pungente estrondo no peito. Seria isto meu coração gritando por uma atitude? Porém, algo anormal ocorria: meus pés eram de chumbo, quase penetravam no asfalto de tanto peso. Aproximar-me parecia impossível.

O cenário mudou. Vi os cabelos vagarosamente descerem a altura de uma criança à medida que sua dona escorregava, ainda agarrada ao poste, até o chão. Atingindo a superfície irregular da calçada, largou o poste e sentou na sarjeta. Parecia a perfeita imagem da deusa caída, derrubada de seu lugar de direito por homens mesquinhos. Os olhos adquiriram um tom escarlate pelas lágrimas atiradas; a face estava levemente inchada e abatida. Aquele terrível espetáculo incutia um profundo incômodo na minha alma; custava-me assistir, embora jamais tenha desviado olhar um instante sequer.

O sofrimento da bela desconhecida, enfim, encheu-me de uma coragem ousada. O chumbo dos meus pés, lentamente, foi vencido. Consegui me colocar em direção ao motivo da pequena aventura daquela noite. A figura lacrimosa, absorta na própria dor, não notou este que vos fala, até estar exatamente ao seu lado. Ela levantou o olhar assustado, subindo pelas minhas pernas, meu tronco, meu pescoço, meu rosto; senti-me julgado e, ao mesmo tempo, eufórico por merecer sua análise. Crescia uma sensação ébria em mim; o ápice foi o cruzamento de nossos olhares, uma confrontação facilmente perdida por mim. Não havia modo de encarar aquelas pupilas penetrantes. Desviei os olhos; procurei assumir um ar solícito, uma postura que retratasse minha piedade por sua situação. Jamais saberei se funcionou, se exerceu grande ou pequena influência no resultado final ou se, de tão cômica a atitude que transmiti, ela sentiu que nenhum mal poderia vir deste histrião. De qualquer modo, eis o que ocorreu.

Levantou-se. Observei os cabelos atingirem sua altura máxima em meu nariz. O choro cessara. Havia dignidade naqueles movimentos, na face molhada pelo líquido salgado, nos ombros projetados. Reergueu-se da queda. Chegou perto do meu corpo e envolveu-me no que seria um longo e apertado abraço. Correspondi meio sem jeito, com alguns tapinhas nas costas. Escutei um pequeno gemido e soluços, o que revelava o retorno das lágrimas. Quis consolá-la com palavras, mas nada fui capaz de proferir (afinal, o que dizer? Não fazia ideia acerca do problema; sem dúvidas, foi melhor assim). Agarrou-se a mim como se eu fosse um farol e ela, um barquinho cansado de ser atirado em enormes ondas pela tempestade. Ficamos nessa posição por toda a vida. O mundo girava e nós, naquele sublime momento, continuávamos atados, os dois estranhos mais próximos que existiram. Quando o unicórnio terminou sua passagem, ela se soltou de meus braços e esboçou um sorriso. Nunca a língua produzirá palavras suficientes ou exatas o bastante para que seja possível descrever aquela imagem com a qual fui agraciado. Aos poucos, se afastou pela rua mal iluminada, até dobrar uma esquina e desaparecer para sempre nas sombras.

Não resta muito a acrescentar após sua partida. Uma enorme escuridão desceu, enquanto eu era acometido por vertigens e náuseas. Nem lembro de que modo voltei para casa. Nada mais me importava, exceto aquela jovem que se foi e levara consigo toda a Beleza. No entanto, após algumas semanas, me recuperei do fortuito encontro; estava até com forças renovadas para seguir minha velha rotina. Não sei se o episódio daquela terça feira ainda habita suas lembranças. É provável que venha a esquecer rapidamente pela força inexorável do Tempo. Eu, de minha parte, guardarei sempre a recordação da menina dos cabelos coloridos.


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