O Primeiro Sangue de um Homem - Parte 1

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Meu expediente terminou às 17, como de praxe. Eu precisava esperar algumas horas para levar a cabo minhas intenções noturnas, de modo que procurei algum restaurante para jantar e aguardar tranquilamente o fluxo das horas. Há vários estabelecimentos culinários no Centro, ávidos para matar a fome dos trabalhadores que se movimentavam na região todos os dias. Quase todos se assemelhavam a túneis estreitos e profundos, incrustados naquela selva de pedra; alguns ofereciam cardápios mais variados, com comidas preparadas ao rigor de paladares proletários mais refinados; outros se contentavam em fornecer opções mais reduzidas a preços módicos, tendo a massa mais pobre como alvo. Eu era assíduo frequentador desta última categoria. Nunca fui exigente com sabores, nem me importei em demasia com alimentos, que, para mim, eram apenas substâncias cuja finalidade última era manter o corpo em funcionamento. Perto do trabalho, existiam três lugares que se encaixavam no meu perfil. O primeiro exibia seu letreiro velho e apagado da calçada oposta. Ousei comer lá certa vez. A comida beirava o intragável, até mesmo para minha língua indulgente; sentia-me fuzilado por seu olhar senil sempre que saía para uma refeição, como que me recriminando por abandonar seu serviço, a despeito da rapidez da chegada. O segundo abria um largo sorriso na esquina, com um semblante juvenil e convidativo. Tudo soava novo naquele restaurante; de fato, há pouco tinha aberto ali, com o intuito de galgar a concorrência dos arredores. Para isso, investiu bastante na aparência: pintura reluzente, nome chamativo e mesas confortáveis. No entanto, parece-me que faltou dinheiro para cuidar da cozinha, pois esta conseguia ser apenas um pouco melhor do que a anterior. Além disso, tamanha afetação me aborrecia profundamente, de modo que minha cabeça chegava a rodopiar naquela ambiente mentiroso. Almocei lá uma vez para nunca mais voltar. Por fim, o terceiro foi aquele para o qual entreguei minha boca. Este último restaurante estava razoavelmente distante do meu ganha pão, de modo que precisava engolir a comida e voltar em passos rápidos. Meu chefe possuía poucas virtudes – para ser franco, nenhuma me ocorre no momento, mas ele deve ter as suas –, e, sem dúvidas, a paciência lhe era a mais carente. Bastava um pequeno erro, o mais leve sinal de contrariedade às suas rígidas regras, que o monte de pólvora em seu peito (de fato, sempre acreditei que possuía um barril no lugar do coração) explodia com força devastadora. Os casos mais extremos resultavam em duros descontos do salário ou até mesmo em demissões. O primeiro ataque do qual fui testemunha causou-me tal impressão que prometi nunca direcionar aquilo para mim. Não recordo das circunstâncias responsáveis por seu arroubo de cólera na ocasião, apenas que a pobre vítima se chamava Carlos e de como se sentiu humilhado após o ocorrido. Lembro também dos gritos bestiais, dos socos recebidos pela mesa de meu colega, das veias pulsando na testa e no pescoço daquela criatura escabrosa. O temor de ser alvo de tamanha fúria me estimulava a andar na linha e trabalhar de modo competente.

Então, o que havia de especial naquele restaurante, a ponto de colocar em risco meu salário e minha dignidade? Que força misteriosa me impulsionava a religiosamente comer o almoço na opção mais distante de todas, mesmo que a comida não valesse a pena o esforço? Bem, o desejo é algo engraçado. Por mais que pensemos "Não, isto jamais irá se realizar! É impossível!", ainda deixamos viva a esperança na forma de uma pequena chama, que alimentamos constantemente com o objeto de nosso desejo; este ato nos permite fantasiar e concretizar, ao menos no plano imaginário, o que queremos fazer. O fogo, depois de ser nutrido por muito tempo, passa a crescer e pode atingir proporções desastrosas. O ardor no peito torna-se insuportável; a esperança, de tão incendiária, quer consumir tudo. Quando já não resta nada em nós para ser consumido, ela costuma se extinguir, até retornar direcionada para outro alvo, outro horizonte, outras aventuras. No entanto, nem sempre o fim do processo ocorre desse modo. Há um segundo caso, onde o desejo não se efetiva em forma física, mas quer sê-lo a qualquer custo. Assim, após ter as entranhas reduzidas a cinzas, as labaredas se recusam a sumir, implorando por mais material, para que possam se perpetuar. Para isso, necessitam serem satisfeitas de outro modo. E surge a busca por uma substituição do objeto original. Procura-se algo para tornar físico o desejo e transmitir as labaredas que nos atormentam. Supostamente, isso seria capaz de aliviar aquele sentimento incandescente. O problema é que, nesses casos, quase tudo se torna uma medida paliativa, pois logo a chama renasce e tornamos a buscar outro substituto, atendendo ao clamor incendiário da esperança, que, a essa altura, já se converteu em desespero. Incapaz de saciar a fome com o objeto original e inconformada com este fato, o ardor derrete a razão intrínseca ao nosso ser, acabando com qualquer vestígio de racionalidade. A obsessão trouxe a loucura a muitos homens, e todos estamos sujeitos aos labirintos insidiosos da mente. A falta de habilidade em escapar do labirinto é, quiçá, um dos maiores males da humanidade.

Sinto que divaguei demais no parágrafo anterior... Mas essas explicações foram necessárias, ao menos para me sentir justificado perante a pessoa que porventura leia este relato. Agora, posso revelar a fonte da minha inquietude: uma moça na casa dos 22 anos. Ah, podem rir, eu sei que algum de vocês irá rir ou pensar "Então, seu problema era apenas esse?". Mas vocês não entendem, não, ninguém irá entender o que ela representava pra mim. Como eu ansiava pelo almoço! Corria ao restaurante apenas para vê-la, admirar sua figura deslizando entre as mesas, distribuindo pratos e anotando novos pedidos. O lugar em questão não era um self-service, como tantos que infestam o Centro dessa cidade, preferindo adotar um modelo mais tradicional, onde os garçons anotavam o pedido dos clientes e traziam em seguida. Havia, é claro, a opção de pratos feitos para os mais indecisos ou apressados. Eu fazia parte desa última categoria, devido a distância entre o local e meu trabalho. 

A moça em questão, cujo nome preservarei em segredo, era uma das poucas garçonetes do local, que contava apenas com mais dois serviçais e o caixa.

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⏰ Last updated: Aug 08, 2019 ⏰

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